terça-feira, 25 de abril de 2017

RESENHA | Neil Gaiman - Deuses Americanos


Deuses Americanos é considerada a obra prima do escritor e quadrinista britânico Neil Gaiman, conhecido por ser o roteirista da aclamada HQ Sandman. Lançado em 2001, este livro ganhador dos prêmios Hugo, Nebula e Bram Stoker é uma mistura de road trip, mitologia, suspense e uma pitadinha de terror. A versão que utilizei nesta resenha é a chamada Edição Preferida do Autor, uma espécie de versão estendida da edição original, contando com um acréscimo de cerca de 12.000 palavras, segundo o próprio autor, e foi publicada aqui no Brasil pela Editora Intrínseca numa edição com acabamento diferenciado.

A trama gira em torno do ex-presidiário com o nome incomum de Shadow, que é liberado de sua pena sob regime condicional após a morte da esposa, Laura Moon. Completamente sem rumo, Shadow é contratado como guarda-costas de um velho trambiqueiro que chama a si próprio de Sr. Wednesday. Sua vida então vira de cabeça para baixo quando ele se vê no meio de uma guerra invisível entre duas facções: de um lado os antigos deuses, dos mais variados panteões, liderados por Wednesday, cuja verdadeira identidade é Odin, da mitologia nórdica (aqui o autor usou um jogo de palavras, já que o termo para o quarto dia da semana em inglês deriva da expressão "Dia de Woden", nome pelo qual Odin era conhecido na antiga Bretanha); do outro lado estão os deuses modernos, encarnações dos novos objetos de culto da humanidade, como a Internet, a Mídia, o Mercado, a Aviação, etc.

Muito do que é visto em Deuses Americanos guarda certa semelhança com o que o autor já havia feito em Sandman, como o uso de metalinguagem para personificar conceitos abstratos, atribuindo-lhes características humanas. Enquanto lá haviam os Perpétuos, aqui ele trabalha com a noção de divindade. Deuses existem, mas estão longe de ser aqueles seres todo-poderosos e superiores que imaginamos: eles caminham entre nós, têm e empregos normais e são movidos pelas mesmas paixões. Neil Gaiman contradiz o conceito de que os seres humanos são dependentes de seus deuses, revelando uma outra realidade: são eles que precisam de nós, de nossa crença, de nossa devoção, sem o que eles ficam cada vez mais fracos, até que, se forem completamente esquecidos, acabam morrendo. Desta forma, é a fé o objeto de disputa entre as duas facções de divindades. Mesmo os deuses modernos, retratados com muito mais poder e influência que os antigos, possuem em seu íntimo o medo de ficarem obsoletos, pois a raça humana está em constante progresso, e algo que hoje é novidade e detém a atenção de milhões de pessoas amanhã ficará ultrapassado e logo será esquecido pelas próximas gerações. Foi o que aconteceu com a máquina de escrever no advento do computador pessoal, o qual já está sendo posto de lado pelos smarthphones. E quem sabe o que virá a seguir?

Neil Gaiman faz jus aos prêmios que recebeu e se confirma como um dos maiores escritores modernos com seu estilo de escrita envolvente; ele é um desses raros escritores que conseguem transportar o leitor, se não de corpo, pelo menos de mente e coração para dentro das páginas de seus livros, de modo que é quase impossível parar de ler depois que se começa. Seus textos são inteligentes, os personagens, embora improváveis, são cativantes, e os diálogos muito bem construídos. Eu separei algumas frases que me causaram grande impacto durante minha primeira leitura desta obra, só para o leitor sentir um gostinho do que o autor apresenta em Deuses Americanos.


"Você precisa entender essa coisa de ser deus. Não é magia. É só ser você, mas aquele você em que as pessoas acreditam. É ser a essência concentrada e aumentada de si mesmo. É se transformar em trovão, ou no poder de um cavalo galopante, ou em sabedoria. Você absorve toda a fé e fica maior, mais legal, mais do que humano. Você cristaliza. (...) Então, um dia esquecem que existe, não acreditam mais em você e não fazem mais sacrifícios... não se importam, e quando você percebe, está misturando cartas ara confundir quem passa na esquina da Broadway com a Rua 43."


"Existem novos deuses crescendo nos Estados Unidos, apoiando-se em laços cada vez maiores de crenças: deuses de cartão de crédito e de auto-estrada, de internet e de telefone, de rádio, de hospital e de televisão, deuses de plástico, de bipe e de néon. Deuses orgulhosos, gordos e tolos, inchados por sua própria novidade e por sua própria importância."


"Eu sou a mãe dos idiotas. Sou a televisão. Sou o olho que tudo vê, sou o mundo do raio catódico. Sou a expositora de tetas. O pequeno altar em torno do qual a família se reúne para louvar. 
- Você é a televisão? Ou é alguém dentro da televisão?
- A televisão é o altar. Eu sou a entidade para quem as pessoas fazem os sacrifícios. 
- O que elas sacrificam?
- O tempo de vida, principalmente - respondeu Lucy. - Às vezes, umas às outras."


"Olha, este país não é bom para os deuses."


Uma das coisas que se pode notar nos textos acima é que Neil Gaiman faz uma crítica ao estilo de vida norte-americano, o qual, em certa medida, acaba influenciando o modo de vida de todo o mundo ocidental. Este estilo de vida, fruto do consumismo exacerbado dos nossos tempos, é marcado pelo desapego, não aquele que tem a ver com humildade, mas num sentido de não se dar o devido valor às coisas: tudo é mesquinho, tudo é descartável ou substituível, desde objetos até pessoas. Neste contexto, nem as crenças ficam de fora: qualquer divindade ou religião pode ser facilmente trocada por outra que pareça oferecer mais vantagens, e códigos morais são flexibilizados para se adequarem a estas mudanças.

Nesta jornada para conhecer o âmago do que seria o espírito americano, o autor nos leva junto com Shadow numa viagem pelos recônditos secretos dos EUA, evitando os grandes cartões postais e metrópoles retratadas quase à exaustão nos filmes e seriados de TV. Ao invés disso, somos apresentados a locais pouco conhecidos, mas que atraem nosso interesse e instigam nossa imaginação, como a atração de beira de estrada House on the Rock, no Wisconsin, a Rock City, na Georgia - com sua vista dos sete Estados -, e o esquecido centro geográfico dos Estados Unidos, localizado próximo a Lebanon, no Kansas.

Além da história principal, o livro possui vários interlúdios, compostos por contos que narram a vinda de algumas divindades e criaturas mitológicas junto com imigrantes do Velho Mundo para a América. Embora em alguns momentos quebrem o ritmo da trama central, estes contos rendem boas histórias, como o da entidade Bilquis, outrora a Rainha de Sabá, que atua como prostituta em Los Angeles, ou o do ifrit (gênio) árabe que trabalha como taxista numa Nova York sem tempo para relacionamentos, ou ainda a saga do casal de gêmeos africanos vendidos como escravos e arrastados à força para um Novo Mundo onde pessoas de pele negra eram consideradas inferiores a animais. Há ainda uma trama secundária na qual Shadow se vê no centro de um mistério que paira sobre a pacata cidadezinha de Lakeside, onde todo ano crianças e adolescentes desaparecem sem deixar rastros durante o inverno. A resolução deste enigma segue o mesmo script da história principal: tal como nos truques com moedas realizados pelo protagonista, Gaiman deixa a verdade diante das vistas do leitor enquanto atrai sua atenção para outras coisas.

Por fim, não poderia finalizar esta resenha sem falar sobre os personagens que povoam as páginas de Deuses Americanos, já que são eles o ponto mais alto desta leitura. Por incrível que pareça, Shadow é um protagonista morno, sem sal. Sua apatia e aparente indiferença diante de todas as situações fantásticas pelas quais passa ao longo da jornada com Wednesday chega a ser irritante em alguns momentos; mesmo com a justificativa do luto pela esposa - a perda da pessoa que ele mais amava e as circunstâncias da morte faz com que nada mais importe para ele - não seria suficiente para explicar a ausência de questionamentos por parte do personagem. A volta de Laura do mundo dos mortos, ao invés de tirá-lo da catarse, só faz mergulhá-lo ainda mais na introspecção. Porém a falta de carisma de Shadow é compensada em dobro pela simpatia de Wednesday. Mesmo sendo um tremendo vigarista, salafrário e pervertido, Odin logo de cara conquista o leitor com sua presença de espírito e senso de humor. Outros personagens também se destacam, como Laura Moon, o garoto técnico, Samantha Black Crow (é dela um dos monólogos mais impressionantes do livro), o rabugento Czernobog e o velhinho simpático Hinzelmann.

Há ainda muitas coisas que eu poderia falar sobre este livro, no entanto isso acabaria tirando a graça da leitura. Deuses Americanos é um livro estranho, de múltiplas facetas, e cabe ao leitor tirar suas próprias conclusões.

Boa leitura!

P.S.: Deuses Americanos será adaptado para uma série de TV exibida pelo canal Starz, dos mesmos produtores de Hannibal. Veja os trailers da primeira temporada aqui e aqui.

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