Na cultura ocidental é comum que o aniversariante receba presentes daqueles que lhe são próximos, e muitos de nós já nos deparamos com a inusitada situação de não saber o que dar para aquele amigo ou parente que é bem de vida, já que, sendo esta pessoa acostumada a tudo de melhor, dificilmente um presente oferecido por alguém com baixo poder aquisitivo poderia proporcionar-lhe mais do que uma simples lembrança afetuosa (embora isso de forma alguma desmereça o presente). Agora imagine este caso aplicado ao Superman: o que um cara dotado de superforça, supervelocidade e a habilidade de voar, habilidades que fazem dele o homem mais poderoso do mundo, poderia desejar? Esta é a premissa básica de Para o Homem que Tem Tudo, HQ escrita por Alan Moore e publicada na edição anual da revista do Superman, em 1985, pela DC Comics. Ao lado de seu parceiro de Watchmen, o artista Dave Gibbons, Alan Moore convida o leitor para descobrir qual o maior desejo do Homem de Aço.
A narrativa começa mostrando Kal-El vivendo uma vida normal e feliz em Krypton, seu planeta natal; seus pais estão vivos, ele é casado, tem filhos e um emprego comum. No entanto, tudo isso não passa de uma amarga armadilha, uma ilusão provocada por um de seus inimigos, o alienígena amarelo conhecido como Mongul. Somos então transportados para a Fortaleza da Solidão, onde Mulher Maravilha, Batman e Robin, que tinham ido visitar o Superman por ocasião de seu aniversário, descobrem que o kriptoniano encontra-se numa espécie de transe, causado por um parasita chamado Clemência Negra. A planta (ou fundo, ou planta-fungo) se alimenta da força vital do hospedeiro em troca da realização de seu maior desejo, e a única forma da vítima se livrar da paralisia é desistindo do próprio sonho.
Novamente o britânico Alan Moore acerta em cheio ao traduzir a verdadeira essência do herói para as páginas desta HQ: mais do que o brutamontes superpoderoso que muitos roteiristas sem imaginação gostam retratar, o Superman de Alan Moore é dotado das características que consagraram o personagem como um símbolo do genuíno heroísmo: nobreza, bondade e desprendimento sem limites, mesmo que isso acabe se convertendo para ele em autossacrifício. Seu maior desejo não é obter riquezas, casar-se com o amor de sua vida, Lois Lane, ou até mesmo ver seus inimigos finalmente derrotados. Tudo que ele quer é apenas viver uma vida comum, ser mais um na multidão, um simples trabalhador anônimo que tem um lar para voltar ao final de um dia exaustivo de trabalho. Como Superman, no entanto, isso não passa de um sonho, pois sua enraizada educação moral lhe impede de não fazer nada enquanto houver injustiça no mundo, quando ele tem todos os meios para impedi-la. E é aí que reside a crueldade do enredo de Alan Moore: quando finalmente o Homem de Aço consegue o que quer, ele precisa abdicar de seu sonho para ajudar os amigos.
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Kal-El e sua Família |
Em algum nível de sua consciência, Superman sabe que tudo não passa de ilusão e, conforme Mongul vai derrotando um a um os heróis na Fortaleza da Solidão, o mundo idílico que a Clemência Negra criou na mente do Super começa a desmoronar. A outrora gloriosa civilização kriptoniana passa a exibir sintomas de decadência, sua população se divide em facções que se odeiam entre si, a Família El se torna alvo de extremistas que a acusam de fascismo, chegando ao ponto da prima do Superman ser espancada quase até a morte por uma turba furiosa. Até mesmo Jor-El, seu pai biológico, que sempre fora uma de suas maiores inspirações, lhe decepciona, ao tornar-se o líder de um grupo religioso radical que quer recuperar a antiga glória kriptoniana a qualquer custo. Todos estes eventos parecem ser criados pelo próprio subconsciente do Superman, talvez como um artifício para alerta-lo do perigo em que se encontra, ou até mesmo como um reflexo da iminente derrota de seus amigos pelas mãos de Mongul. A técnica empregada por Moore e Gibbons, mostrando os acontecimentos nas duas linhas narrativas - a realidade dentro da cabeça do Superman e a luta contra Mongul na "casa" do herói - convergindo para um clímax emocional demonstra a maturidade e genialidade dos dois artistas, cujo entrosamento atingiria seu ápice na minissérie Watchmen.
Alan Moore, conhecido por seus roteiros maduros, respeita (e até certo ponto homenageia) a forma como os quadrinhos eram feitos na chamada Era de Bronze. Ver os heróis fantasiados indo visitar o Super Homem em seu aniversário ou Batman repreendendo o Robin (Jason Todd) por ter pensamentos impuros em relação à Mulher Maravilha demonstram isto perfeitamente. Embora seja uma obra complexa, com um roteiro "cabeça", o quesito ação não deixa a desejar, com excelentes cenas de luta, e quem acaba surpreendendo de forma positiva nesta história é o Robin, pois, sendo apenas um adolescente e ainda por cima sem poderes, acaba sendo o principal responsável pela derrota de Mongul.
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Mongul |
Além do roteiro excelente, um ponto positivo para esta HQ sem dúvida é a arte. O traço de Gibbons é impecável, no mesmo nível dos melhores desenhistas da época. Sua caracterização dos personagens está perfeita, com destaque para o Homem de Aço e Mongul, que aqui é retratado como um vilão intimidador e cruel. A diagramação é inteligente, sem exageros, e em diversas situações ele utiliza o recurso de narrar eventos paralelos - os quais em algum momento irão se interligar - em uma mesma página, como na sequência final em que vemos de um lado Robin tentando livrar Batman da Clemência Negra enquanto Superman luta com Mongul.
Para o Homem que Tem Tudo é uma história indispensável para fãs do Superman, e para aqueles que curtem quadrinhos em geral, por se tratar de um verdadeiro clássico. Esta obra já sofreu diversas adaptações: o desenho animado Liga da Justiça Sem Limites adaptou esta história com bastante fidelidade, e a série de TV da Supergirl recriou o enredo do Alan Moore, com a diferença de que lá Superman foi substituído pela prima. Aqui no Brasil esta HQ foi publicada no encadernado em capa dura O Que Aconteceu ao Homem de Aço, da Panini, que reuniu as contribuições do gênio britânico Alan Moore nas histórias do Superman em um único volume a um preço bastante acessível.
Boa leitura!
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Superman por Dave Gibbons |
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