sábado, 4 de março de 2017

RESENHA | A Roda do Tempo, Livro 2: A Grande Caçada

" A Roda do Tempo gira, e Eras vêm e vão, deixando memórias que se transformam em lendas, depois se desvanecem em mitos e já estão esquecidas há muito tempo quando a Era torna a aparecer."



Eis que a Roda do Tempo gira outra vez, trazendo-nos o segundo livro da épica saga de fantasia escrita por Robert Jordan, que, ao lado de George R. R. Martin, figurou como um dos herdeiros de Tolkien. O primeiro livro (confira minha resenha aqui) não teve o mínimo pudor em basear grande parte de sua estrutura narrativa na trilogia d'O Senhor dos Anéis, principal referência do gênero, acrescentando pouca coisa de novo. Na sequência de O Olho do Mundo, porém, Jordan conseguiu se redimir ao afastar-se da sombra de seu mentor para apostar numa trama realmente nova. Não que A Grande Caçada seja uma história original: trata-se da velha busca por um artefato místico capaz de dar àquele que o possuir um grande poder. Tal artefato bem que poderia ser um Anel ou o Cálice Sagrado, mas neste caso é a Trombeta de Valere, a qual, quando tocada, convoca os antigos heróis lendários para lutar em favor do portador da trombeta. Onde o enredo de Jordan acerta, contudo, é em explorar outras possibilidades de seu rico universo fantástico que só haviam sido sugeridas no primeiro livro.

Toda obra de fantasia que se preze tem como uma de suas principais características apresentar uma grande diversidade de povos e raças, cada um com sua cultura e particularidades. Enquanto O Olho do Mundo é um livro mais contido neste sentido, em A Grande Caçada Jordan expande consideravelmente seu universo. Somos apresentados à cidade de Cairhien, onde os nobres vivem um estilo de vida marcado por intrigas e manipulação, o qual eles chamam de O Grande Jogo; descobrimos como os Ogier vivem em suas moradas nas bosques, que eles chama de Pousos; e temos o primeiro contato com o misterioso povo do deserto, os mortíferos Aiel. Nenhum deles tem importância crucial na trama, no entanto servem para enriquecer a leitura, e deixar em aberto possibilidades a serem exploradas e livros futuros.

Mas se há uma facção que recebeu um grande destaque neste livro foi a das Aes Sedai, feiticeiras capazes de canalizar o Poder Único, a magia do universo de Jordan. Ficamos sabendo mais sobre suas subdivisões - as chamadas Ajahs, que variam de acordo com suas personalidades e propensões-, sua hierarquia, seus ritos de passagem, e principalmente, como elas se relacionam entre si. Apesar de fazerem parte de uma mesma Ordem, cada uma das Ajahs tem seus próprios objetivos, e não são raras as vezes em que o objetivo de uma conflita com o de outra. Por exemplo, a Ajah Vermelha tem total aversão a homens, enquanto a Verde busca abertamente a interação com estes. 

Nynaeve, Egwene, Elayne e Min - quarteto de garotas apresentadas no volume anterior, e que possuem alguma relação com Rand - formam o núcleo de Tar Valon, e também são responsáveis pelas cenas mais interessantes do livro. Dentre estas, as que mais evoluem são Nynaeve, que a cada aparição mostra que veio para se tornar a maior Aes Sedai do mundo; e Egwene, a qual, devido às duras experiências por que passa neste volume perde a inocência da jovem camponesa para finalmente descobrir como as coisas realmente funcionam no mundo real. O único ponto que me incomoda é a insistência do autor no romance água com açúcar entre Egwene e Rand, e tudo só piora quando ele resolve inserir não apenas Elayne, mas também Min nesta equação. 

Outra grande novidade que este livro trouxe foi a chegada do povo Seanchan, lá pela segunda metade da história, o que deu um novo fôlego à trama e tornou a leitura muito mais interessante. Os Seanchan supostamente são os herdeiros do lendário imperador Arthur Asa-de-gavião, os quais retornaram do exílio no além-mar para reconquistar o continente principal onde a história se desenrola. Fazendo uma analogia com o nosso mundo, é como se uma das legiões do ditador romano Julio Cesar retornasse de um exílio na América durante a Idade Média, navegando em caravelas portuguesas, e tivesse treinamento militar ao estilo dos samurais japoneses e uma divisão social parecida com as castas hindus. Prece confuso, mas tudo isso se encaixa perfeitamente na trama, e olha que eu não mencionei a principal característica deste povo: a utilização de Aes Sedai escravas como arma de guerra, através de um artefato chamado a'dam, que nada mais é do que uma coleira encantada de prata que obriga a damane (a Aes Sedai escravizada) a cumprir todas as vontades de sua s'uldan (mulher responsável por controlar a Aes Sedai). 

Apesar da clara evolução da obra, Jordan repete alguns erros do primeiro livro, como o ritmo da escrita: enquanto vemos um começo instigante e uma conclusão frenética, o meio é cansativo e até enfadonho às vezes. Curiosamente, as partes mais enfadonhas ficam a cargo do protagonista. Se por um lado Rand al'Thor começa a aprender a utilizar suas recém-descobertas habilidades, por outro ele evolui muito pouco como personagem, permanecendo quase todo o livro estacionado na negação de seu chamado. Ele se recusa o tempo inteiro a aceitar que é o Dragão Renascido - único capaz de derrotar o grande vilão, B'alzamon -, a despeito de todas as profecias que se cumprem ao seu redor, da palavra de Moiraine e até mesmo do testemunho dos antigos heróis ressuscitados pela Trombeta, os quais o reconhecem como a reencarnação de Lews Terin Telamon, o último Dragão. No entanto, tudo leva a crer que ele finalmente irá aceitar seu destino, e esperamos que no próximo livro ele se torne o protagonista que nasceu para ser. 

Outros personagens que também são deixados de lado são a dupla Mat e Perrin: o primeiro, que no volume anterior só servia como alívio cômico e depois se tornou um peso insuportavelmente chato para o protagonista, nesta história continua sendo um peso morto; já Perrin, que em O Olho do Mundo havia recebido bastante atenção do autor e se tornara o personagem mais interessante daquele livro quando descobriu sua habilidade de falar com os lobos, aqui tem muito pouca importância. Por fim, a própria Moiraine, que havia carregado o primeiro livro nas costas e praticamente tirado o protagonismo de Rand, em A Grande Caçada quase não aparece depois dos capítulos iniciais, quando é revelada sua verdadeira missão. 

Colocando todos estes fatos numa balança, é inegável que A Grande Caçada é um livro muito melhor do que o primeiro. É evidente o distanciamento de Robert Jordan do estilo Tolkeniano, sem, contudo, renegar suas origens. A Roda do Tempo é uma saga predominantemente de fantasia, repleta de conceitos originais e muito interessantes, e para quem gosta deste estilo literário, com certeza é um material de primeira qualidade. Sendo uma obra muito extensa (a série foi finalizada com 14 volumes!) é de se esperar que algumas falhas sejam corrigidas e que os personagens, bem como a trama sem si, evoluam junto com os leitores. 

Boa leitura!


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