Morrison satiriza a condição do Homem Animal, apresentando-o em sua primeira edição como ele realmente era visto pelos leitores: um herói de quinta categoria. Casado e com um casal de filhos pequenos, o aspirante a herói trabalha como dublê de filmes, mas praticamente depende da esposa, que é desenhista de storyboards. O autor dá bastante destaque para este lado mais "família" do Homem Animal, e desde o começo agrada ao não apelar para aquele velho tabu dos quadrinhos de que um super herói não pode ter uma família. É até interessante notar a cumplicidade entre Buddy e Ellen quando vemos o herói exercitando as suas habilidades com a ajuda da esposa.
Além do uniforme, a principal mudança estabelecida por Morrison foi o tom da HQ: as histórias do Homem Animal passaram a abordar temáticas sociais sérias, principalmente no que tange aos maus tratos sofridos pelos animais. Morrison, que é vegetariano e faz parte de grupos de defesa dos animais, teve a brilhante sacada de usar um super herói cujos poderes advém do mundo animal para levantar a bandeira da causa para os leitores da revista. Assim, o Homem Animal se tornou vegetariano e passou a participar ativamente de grupos de defesas dos animais. Três histórias se destacam neste sentido: o primeiro arco, que vai até a edição 4, no qual ele aborda as atrocidades cometidas a animais em testes de laboratórios; Entre o Demônio e o Azul Profundo do Mar, na qual ele expõe o brutal costume dos habitantes das ilhas Faroé, na Dinamarca, de assassinar centenas de golfinhos quando eles passam pelas ilhas no verão (existe um vídeo no YouTube que mostra como é este festival, mas já aviso que as cenas são fortíssima); e por último há O Evangelho Segundo o Coiote.
O Evangelho Segundo o Coiote é uma história emblemática na qual Morrison dá aos leitores uma pequena dica da direção que seus roteiros irão tomar daqui para a frente. Esta é uma obra espetacular, repleta de metalinguagem e que nos leva a refletir sobre como a violência se torna cada dia mais banal. Uma prova disso é a forma como tratamos com tranquilidade nossos filhos (e nós quando éramos crianças) assistirem a animais digladiando-se uns com os outros em desenhos animados aparentemente inocentes, como Tom e Jerry, Papa-Léguas, Looney Tunes, dentre outros. O Coiote da história é nada mais nada menos do que uma sátira ao personagem da Looney Tunes, que tenta de toda forma capturar o Papa-Léguas, mas sempre acaba se dando mal. Na trama de Morrison, o Coiote se cansa de tanta violência e procura seu Criador, um homem misterioso segurando um pincel. O Criador aceita a súplica por paz do Coiote, mas o condena a viver no "mundo real" (mais tarde você irá entender porque usei aspas), onde ele recebe um novo corpo. Só que esta nova existência para o Coiote é ainda pior que a anterior, pois, para que haja paz em seu mundo, ele precisa sofrer, e a primeira coisa que lhe acontece ao reencarnar no mundo real é ser atropelado por um caminhão. Só que, assim como nos desenhos, ele nunca morre, mesmo sofrendo os piores tipos de morte, e sempre ressuscita; a analogia com Jesus Cristo, que se sacrificou para salvar a humanidade de seus pecados, é bem evidente. Morrison faz um paralelo sutil entre a realidade do mundo animado do Coiote e a nossa realidade quando vemos o destino da moça apresentada no inicio da história, e a sanha assassina que move o caminhoneiro, que culpa o Coiote por suas desventuras. Assim como no mundo dos desenhos, a principal força que move o nosso mundo é a violência.
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O Coiote |
No epílogo de O Evangelho Segundo o Coiote temos um vislumbre de uma mão segurando um pincel pintando o sangue do Coiote, enquanto o Homem Animal observa a cena silenciosamente. Com isso já podemos perceber que Grant Morrison pretende extrapolar a barreira que separa o leitor de suas histórias, o mundo dos quadrinhos do mundo real, o Homem Animal do seu "Criador". De fato, toda a trama construída desde O Evangelho Segundo o Coiote culmina no inusitado encontro entre criatura e criador, que acontece apenas na edição 26, mas é justamente o caminho que o autor usa para chegar até este clímax (ou anticlímax, para alguns), é que causa tantos problemas.
Quem já leu as histórias de Morrison está acostumado com seu estilo narrativo nem um pouco convencional. Muitas vezes, após terminar de ler uma história escrita pelo escocês, não é incomum que o leitor fique sem entender nada, como se tivesse deixado alguma informação crucial para trás. Os roteiros de Morrison costumam ser bastante complexos - complexos até demais -, ele não entrega nada "mastigadinho": muitas vezes é preciso reler tudo para começar a entender. Para piorar, seus roteiros geralmente não são lineares, ou seja, você se depara com alguma cena completamente fora de contexto, que só fará sentido algumas edições à frente.
Assim, conforme as edições vão passando, vemos pouco a pouco as peças do quebra cabeças se unindo, e todos os eventos aparentemente desconexos que foram apresentados conduzem o Homem Animal até a pior e mais dramática experiência já vivida pelo personagem. Diante da catástrofe que se abate sobre o herói, o vemos em uma busca enlouquecida por vingança, e depois, quando ele percebe que esta não tem sabor qualquer, por respostas. Morrison destrincha ainda mais suas habilidades metalinguísticas quando nos apresenta o Limbo, o mundo para onde vão os personagens descartados, e quando vemos os personagens apagados da linha do tempo da DC Comics com a Crise tentando voltar à existência. A cena mais emblemática deste momento é quando vemos as várias versões do Asilo Arkham sobrepondo-se umas às outras. Não é coincidência que tal evento ocorra justamente nas dependências do famoso sanatório das histórias do Batman, um local onde as fronteiras entre o real e do imaginário se confundem, e que foi o palco de outra obra elogiadíssima de Grant Morrison: Asilo Arkham - Uma Séria Casa em um Sério Mundo.
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O tão aguardado encontro entre o Homem Animal e Grant Morrison é chocante. Eu mesmo só vi outro autor fazer coisa semelhante: Stephen King, que colocou a si mesmo como personagem de sua famosa saga A Torre Negra. Assim como nesta obra, o autor executa um Deus Ex Machina para interferir e mudar o destino de seus personagens. O encontro do Homem Animal com seu roteirista é exatamente o que imaginamos que seria o nosso com nosso Criador. Ele obtém finalmente as respostas que tanto queria para a loucura que tem sido sua vida, embora essas respostas não sejam as que ele imaginava. É impossível não fazer uma analogia ente o que acontece em Homem Animal 26 e nossas próprias vidas: será que nós somos apenas personagens em uma história? Seriam nossas tragédias apenas um forma de entretenimento para seres superiores? Existe realmente o livre arbítrio, ou todas as nossas ações já foram pré-determinadas por nosso Criador? O autor ainda aproveita para fazer uma crítica ao gosto das pessoas por violência como forma de entretenimento, usando o próprio título do Homem Animal como exemplo, no qual ele utilizara cenas de violência para atrair o leitor, sem as quais ninguém jamais se interessaria pelos temas mais importantes abordados por ele, como a causa dos animais.
Independentemente do gosto pelos roteiros de Grant Morrison, que, assim como uva passas, ou você ama ou você odeia, é inegável seu talento como escritor, e a profundidade de seus enredos, por mais impenetráveis que eles possam ser. Contudo, eu não poderia finalizar esta resenha sem falar da arte que permeia as páginas de Homem Animal. Por quase todas as edições os desenhos ficaram a cargo dos artistas Chas Truog e Doug Hazlewood, e eles desempenharam este papel com absoluta competência. Seus desenhos são limpos e agradáveis de se olhar, e justamente a regularidade dos artistas ao longo das 26 edições colaborou para o sucesso desta obra. Por fim, as belíssimas capas são assinadas por ninguém menos que Brian Bolland, de Batman: A Piada Mortal e Camelot 3000. Aqui no Brasil Homem Animal 1-26 foi publicada pela Panini Comics em três encadernados em capa cartão e papel LWC. Boa leitura!
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Capa de O Evangelho Segundo o Coiote |
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