Após a decepção com a season finale de Lost, confesso que fiquei com um pé atrás quando foi anunciada a nova produção de J. J. Abrams: Fringe. No entanto, carente como estava de uma boa série de ficção científica, resolvi arriscar, e numa tarde despretensiosa assisti ao episódio piloto. A partir de então só parei no último episódio, em 2013, após 6 temporadas e exatos 100 episódios.
Criada por J. J. Abrams em parceira com Alex Kurtzman e Roberto Orci, e exibida na terra do Tio Sam pela Fox (aqui no Brasil ela foi ao ar pelo canal pago Warner Channel), Fringe começou como uma típica série estilo procedural, aquele em que os personagens principais têm que resolver o famoso caso da semana. Bons exemplos deste tipo de série são as de investigação criminal, tais como CSI, NCIS ou Criminal Minds. A diferença é que os casos semanais de Fringe não eram nem um pouco convencionais. Imagine um terrorista que ataca um avião com um vírus capaz de fazer com que a pele de uma pessoa fique translúcida, além de derreter todos os seus órgãos vitais; ou uma substância que, quando aplicada em uma mulher grávida, faz com que o bebê em seu útero cresça a uma velocidade espantosa, até que, em poucas horas, ele seja um velho de mais de 100 anos de idade. São estes tipos de bizarrice que a equipe liderada pela agente Olivia Dunham (Anna Torv) precisam lidar todos os dias. Conforme você vai assistindo a série, logo perceberá que a maioria dos episódios sempre começa com alguém morrendo de uma forma estranha ou nojenta, a segunda opção ocorrendo de forma mais frequente.
A inspiração em obras como Arquivo X e a própria Lost se faz claramente presente; Fringe parece uma fusão perfeita entre ambas, unindo o lado policial e investigativo da primeira às conspirações e mistérios da segunda. A instigante abertura já indicava quais temas seriam abordados: nanotecnologia, inteligência artificial, animação suspensa, neurociência, hipnose, singularidades, buracos de minhoca. Tudo parte da chamada "Ciência de Borda", a qual engloba teorias que se situam na fronteira entre a ciência e a ficção, entre o real e o fantasioso. Daí o nome da série, já que Fringe em inglês significa borda ou fronteira.
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Olivia Dunham |
A série acompanha o dia a dia da Divisão Fringe, um ramo do FBI liderado pelo agente Phillip Broyles (Lance Reddick) que investiga estranhos casos que ele classifica como o "Padrão". Nas palavras do próprio Broyles: "alguém está fazendo experiências e usando o mundo como laboratório". A principal agente desta estranha divisão é Olivia Dunham, uma policial obcecada pelo trabalho, pouco vaidosa e com vida social praticamente inexistente. Para resolver os estranhos casos do Padrão ela conta com a ajuda de Walter Bishop, um cientista com transtornos mentais que trabalhou em projetos não convencionais para o governo dos EUA durante a Guerra Fria; e seu filho, Peter Bishop (Joshua Jackson), um jovem inteligente, porém cheio de segredos.
Walter é interpretado pelo brilhante John Noble, famoso pelo seu papel na trilogia O Senhor dos Anéis - onde ele foi Denethor. Ele é dono de uma voz incomparável, a qual é sua marca registrada, e é responsável pela maioria dos alívios cômicos da série. Mas não se engane pensando que seu papel é superficial ou meramente de um coadjuvante; o relacionamento entre os Bishops confere um grande peso dramático à série, sendo um dos principais pilares que sustentam a trama principal. Na verdade, se é que dá para definir um tema principal para esta série, é a questão da paternidade, do amor que um pai sente por um filho e das coisas que ele é capaz de fazer para salvá-lo, nem que isso signifique destruir um Universo inteiro.
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Walter e Peter Bishop |
Ao longo das duas primeiras temporadas Fringe foi construindo sua própria mitologia, até que a partir de meados da terceira temporada ela começou a abandonar os casos semanais para focar mais nos eventos da história principal. A partir da revelação do aterrador segredo de Walter a série toma um outro rumo, mergulhando de vez no universo Sci Fi.
Inspirando-se diretamente em obras dos quadrinhos como a Crise nas Infinitas Terras, a série introduziu na TV o conceito dos universos paralelos e dos doppelgangers (sósias de outra dimensão), usados largamente hoje em The Flash e de certa forma em Stranger Things. E as semelhanças com a recente série da Netflix não param por aí: foi em Fringe que vi pela primeira vez os experimentos em tanques de privação, e o uso de substância psicotrópicas em crianças para lhes conferir poderes telecinéticos. Outra ideia interessante dos criadores, e que foi muito bem desenvolvida, foram os transmorfos (shapeshifters), seres híbridos humano/máquina capazes de assumir a forma de outras pessoas (como a Mística dos X-Men). A tese da viagem no tempo também não fica de fora (afinal estamos falando de uma série de ficção científica aqui), ficando a cargo dos misteriosos Observadores, claramente inspirados nos Eternos do livro O Fim da Eternidade, de Isaac Asimov. A série também aborda a teoria dos Primeiros Homens (First People) e da Máquina do Juízo Final (Vacuum), que é um dos maiores mistérios da trama, e que possui uma solução bastante simples e inteligente.
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Setembro, um dos Observadores |
O que não falta em Fringe são referências à cultura pop moderna, desde menções a personagens dos quadrinhos, filmes e artistas da música, até a participação de verdadeiros ícones da ficção cietífica, como Christopher Lloyd - o Dr. Brown de De Volta para o Futuro e Leonard Nimoy - o eterno Spock da série Star Trek. Também é possível encontrar dezenas de easter eggs escondidos pela série, como quando vemos no universo paralelo dois Observadores deixando um cinema, onde estava em cartaz o filme De Volta para o Futuro, estrelado por Eric Stoltz. Stoltz havia sido escalado para interpretar Marty McFly, antes de ser substituído por Michael J. Fox. Aparentemente no outro Universo isso não aconteceu!
Uma outra característica marcante da série é a sua abertura. Na sequência inicial aparecem os nomes das ciências de borda que a série abordará, alternando-se com um conjunto de símbolos (glifos). Estes mesmos símbolos aparecem nos intervalos e ao final de cada episódio, e juntos eles possuem um significado específico que remete à trama abordada no episódio. Estes símbolos podem ser resolvidos usando-se esta tabela. A cor do pano de fundo também tem um importante significado: ela indica em qual universo se passará o episódio (azul para o universo original, vernelho para o alternativo), bem como a época em que ele se passa, como no caso do episódio "Peter" (S02E16), que se passa em 1985. Neste episódio a abertura foi produzida num estilo retrô, remetendo aos anos 80, com direito até aos famosos sintetizadores de som da época. No vídeo abaixo é possível ver todas as aberturas.
A quinta e última temporada de Fringe difere totalmente das outras, e é uma ode à própria mitologia da série. Ela se passa em um futuro distópico, onde os seres humanos vivem oprimidos sob o jugo dos Observadores, e Olivia, Peter e Walter são tratados como verdadeiras lendas. Eles são trazidos de volta à vida por um grupo de rebeldes liderados pela jovem Etta, que é nada mais nada menos do que a filha de Peter e Olivia. Juntos, eles precisam encontrar as várias partes de um elaborado plano que Walter elaborou no passado para destruir os Observadores.
Esta temporada pode ser considerada quase que uma série à parte; como trata apenas da trama principal, não tendo muita encheção de linguiça, é uma temporada curta, com apenas 13 episódios. O dilema moral que Walter enfrentou nas temporadas anteriores passa para Peter, que tem de lidar com a questão da paternidade e da perda. A questão das ciências de borda é aplicada aqui sob outra perspectiva: agora já bastante experientes, os personagens principais utilizarão todas as tecnologias bizarras com as quais lidaram anteriormente em sua batalha contra os Observadores.
Recomendo fortemente esta série para aqueles apaixonados por ficção científica de verdade, aos que acreditam que a ciência e o conhecimento não têm fronteiras, e que a única forma de atravessar esta fronteira é através da experimentação, da coragem de sair da teoria para a prática. Gostaria de poder falar mais sobre Fringe, mas a única forma de saber mais obre este maravilhoso universo é assistindo série, pois deixei muita coisa de fora; para falar sobre tudo seria preciso escrever um livro!
Infelizmente, neste universo a Netflix anda não colocou Fringe em seu catálogo; assim, se você não tiver como viajar para um universo alternativo, só resta vasculhar pela Grande Rede em busca dos episódios. Não posso disponibilizá-los aqui, mas posso dar uma dica de onde achá-los. Este mistério, caro leitor, eu deixo para você desvendar.
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