quinta-feira, 15 de setembro de 2016

[RESENHA] John Constantine, Hellblazer - Origens Volume 4: A Máquina do Medo

John Constantine

Na guerra entre o Céu e o Inferno, John Constantine - exorcista, demonologista e mestre das artes ocultas - nunca tomou partido em nenhum lado que não o dele mesmo. Quando jovem, convencido de suas habilidades e querendo impressionar uma garota, ele acabou mexendo com forças além de sua capacidade, e sua arrogância acabou causando a morte de uma garotinha. Este evento deixou profundas marcas em sua personalidade: a culpa corroeu a sua sanidade, levando-o a adotar um estilo de vida autodestrutivo baseado em álcool e cigarros; passou a ter uma visão ácida e pessimista sobre o mundo e a sociedade; e se mostrou incapaz de manter qualquer tipo de laço afetivo, encarando as pessoas apenas como meios para alcançar seus objetivos ou como cartas a serem descartadas em um jogo quando necessário. Recentemente, quando pego no fogo cruzado entre as forças celestes e infernais, frustrou os planos de dominação espiritual de ambas, mesmo sabendo que arruinaria a vida de sua ex-namorada Zed no processo. No entanto, o mago encontrou uma chance de redenção quando, fugindo da polícia, se escondeu entre os hippies nômades da Turba da Liberdade, onde conheceu Marj e sua filha paranormal Mercury. Quando a menina foi sequestrada por uma misteriosa corporação, ele foi forçado a voltar a Londres e ao velho combate; só que desta vez ele não iria lutar por uma causa egoísta, e sim para salvar uma vida.

O Terror

Em A Máquina do Medo, quarto volume da coleção Origens, que reune as primeiras 40 edições da revista Hellblazer, o roteirista de quadrinhos inglês Jamie Delano dá continuidade à busca de Constantine pela jovem Mercury, levando o anti-herói a uma investigação envolvendo sociedades secretas modernas, conspirações políticas, espionagem e o uso de armas psíquicas para controle social. Logo na primeira edição Delano mostra que está bem à vontade à frente do título ao empregar uma técnica narrativa na qual os acontecimentos são narrados por meio de cartas trocadas entre os principais personagens. Por meio destas cartas ele também aproveita para informar o leitor onde cada peça está posicionada no tabuleiro da trama.

Constantine, agora com um novo visual, está de volta a Londres à caça dos raptores de Mercury; Marj e o resto da Turba da Liberdade está na Escócia com a Nação Pagã, um grupo de místicos que vive isolado, imitando o estilo de vida dos celtas, e liderado por ninguém menos do que Zed; já Mercury está presa na sede da Geotroniks ajudando os cientistas a aprisionarem os pesadelos de pessoas que sofrem de terríveis fobias - os "assustadinhos", segundo a menina - dentro da Máquina do Medo. A princípio ela pensa estar ajudando essas pessoas a se livrarem de seus medos, mas logo descobre que está na verdade criando uma abominável criatura feita de puro medo, e começa a traçar seu plano de fuga.

Constantine Salva Simon Hugues


Se o primeiro ato desta longa saga (ao todo A Máquina do Medo conta com 9 edições da revista Hellblazer) teve como objetivo apresentar os novos personagens e dar uma amostra do poder da Máquina do Medo, o segundo ato abrange a investigação de Constantine, que se alia a um improvável grupo de indivíduos que também tiveram as vidas afetadas pela Geotroniks: Geofrey Talbot, um ex-policial obstinado querendo vingar a morte de sua exposa; Simon Hugues, um jornalista gay que sofreu uma tentativa de assassinato ao investigar misteriosos suicídios envolvendo a empresa Geotroniks; e Sergei, um espião russo especializado em armas paranormais.

Juntos eles descobrem a Geotroniks é uma empresa de fachada comandada pela maçonaria, criada com o intuito de desenvolver uma arma psíquica capaz de causar histeria e pânico em massa com o objetivo de incitar uma crise que levaria a um novo panorama político sob o controle dos maçons. Vemos aqui que Delano bebe da fonte das teorias de conspiração envolvendo o controle mental para fins de dominação política. Quem nunca ouviu falar do projeto militar norte-americano conhecido como HAARP, o qual supostamente empregaria um conjunto de antenas que emitiriam ondas eletromagnéticas em frequências específicas que seriam capazes de induzir certos estados emocionais na população (clique aqui para saber mais).

Os Aliados de Constantine

O terceiro ato reintroduz o elemento mágico na narrativa, que sofre uma súbita reviavolta, levando a história numa direção totalmente diferente, para decepção de alguns leitores. Constattine descobre que o verdadeiro inimigo não é a Geotroniks nem os maçons que a controlam, mas um mago renegado que está tentando trazer ao mundo uma entidade conhecida como Jallakuntilliokan, através de um sangrento ritual em que vidas humanas são sacrificadas. E Jamie Delano não tem pena de mandar para o abate os mesmos personagens que ele previamente introduzira na trama, reforçando o argumento de que todos aqueles que se metem nos negócios de Constantine acabam encontrando um triste fim.

Jamie Delano, admitidamente adepto de ideais de esquerda e crítico do liberalismo econômico, não se detém ao expor suas ideias, ainda que disfarçadas pela aura mística e sobrenatural de suas histórias. A ganância das grandes empresas em lucrar explorando os recursos naturais do planeta (no caso as Linhas de Ley), a política conservadora predominante na Inglaterra dos anos 80 que levou muitas pessoas à pobreza, e a perseguição imposta às minorias como negros, gays e imigrantes permeiam as páginas de A Máquina do Medo. Mas o tema que prevalece neste encadernado é justamente o papel da mulher na sociedade moderna. Delano utiliza diversas figuras de linguagem para explicar que as guerras, o medo e todas as mazelas presentes na história contemporânea da humanidade são sintomas da dominação masculina, seja na política, na economia e até na religião. Ele também desconstrói o conceito das Linhas de Ley apresentados previamente, explicando que elas teriam sido criadas por sacerdotes homens na tentativa de dominar e canalisar o poder da Terra que fluia pelas linhas originais, através dos monumentos megalíticos.


Webster Invoca o Jallakuntilliokan

Partindo do princípio que a Terra é um organismo vivo, ela também possui os aspectos jungianos de anima e animus (feminino e masculino, criatividade e racionalidade, caos e ordem), mas a Máquina do Medo e os sacrifícios oferecidos por Webster fazem a metade masculina do espírito da Terra se materializar na forma de um grande dragão, o Jallakuntilliokan. Para reequilibrar a balança, Constantine deverá participar de um ritual de hieros gamus com Zed e Marj que irá fortalecer a metade feminina. Achei brilhante da parte de Delano dar esta oportunidade para Zed se vingar do mago na mesma moeda com a qual ele a afundara: através do sexo. 

Um ponto negativo que deve ser ressaltado é que a conclusão da trama ficou bem parecida com o final do arco Gótico Americano de Alan Moore, na qual dois conceitos opostos e materializados em uma imagem que pode ser apreendida pela mente do leitor se unem no final para trazer um novo equilíbrio. A diferença é que a abordagem de Moore é mais completa, englobando facilmente os aspectos feminino e masculino da história de Delano, que acaba soando repetitiva para quem já leu a obra de Alan Moore. Outro defeito da conclusão é que Delano não mostra os destinos que cada um dos personagens tomou após o grande cataclisma que marca o final da história, deixando algumas pontas soltas que ele só viria a amarrar no último volume desta coleção. 

Anima e Animus

Este encadernado ainda conta com uma história que serve como prelúdio para a próxima saga: O Homem de Família. Trata-se de um conto chamado Da Ficção para a Vida, e é sobre um antigo conhecido de Constantine chamado Jerry O'Flynn, um negociante muito carismático que está sendo perseguido por personagens de histórias de ficção. Aparentemente Jerry serviu como inspiração para personagens de vários escritores, e por isso passou a viver mais nas páginas de ficção do que no mundo real (sim, concordo que é uma loucura, mas uma loucura literária!). Este pequeno conto é repleto de easter-eggs oriundos da literatura britânica: nele podemos ver o pirata cego Pew (do livro A Ilha do Tesouro), Tarzan, o lobo dos Três Porquinos, o assassino chinês Fu Manchu, Bill Sikes (Oliver Twist), e até mesmo Sherlock Holmes. E estes foram só os que eu consegui identificar, porque ainda tem muitos outros! Além disso, podemos notar uma interessante metáfora, utilizada por Delano para alfinetar os executivos que detém os direitos de praticamente todos os personagens de ficção criados do século XX para cá: tais personagens seriam "prisioneiros" do copyright, já que eles não podem ser usados em nenhuma outra mídia a não ser por aqueles que detém seus "direitos". Os únicos personagens livres hoje em dia são aqueles pertencentes ao domínio público, como é o caso do próprio Sherlock Holmes, que não pertence a empresa nenhuma e qualquer diretor, escritor ou artista pode fazer uso de sua imagem.



Jerry é Capturado

Por último, mas não menos importante, é preciso falar que a chegada dos desenhistas Mark Buckingham e Alfredo Alcala melhoraram em muito a qualidade dos desenhos, que estão no mesmo nível de John Ridgway das primeiras edições. Ron Tiner, que assina a arte do capítulo final, também apresenta um traço mais agradável do que os desenhistas dos últimos dois volumes.

A Máquina do Medo foi publicada em terras tupiniquins pela Panini Books num encadernado com capa cartão e papel pisa britte (papel de menor qualidade, do mesmo tipo dos quadrinhos antigos, mais adequado para o tipo de colorização usada na época). Boa leitura!

Capa do Volume 4 de Hellblazer Origens

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