segunda-feira, 4 de setembro de 2017

RESENHA | Demolidor por Frank Miller e Klaus Janson - Volume 3


Não é raro no mundo dos quadrinhos que um quadrinista tenha seu nome mais intimamente ligado a um personagem do que a outros, ainda assim são raros os casos como o de Frank Miller e do Demolidor. Das melhores histórias já publicadas do herói cego de Hell's Kitchen, a grande maioria foi escrita por Miller, tanto que ele é reconhecido pelos fãs como o "criador moral" do Demolidor. Desde a criação do personagem em 1964 por Stan Lee e Bill Everett (e não podemos esquecer de Jack Kirby, que concebeu o visual do herói), não houve outro roteirista/artista que tenha acrescentado tantos elementos a sua mitologia como Frank Miller. Ele enriqueceu a origem do herói, sem, contudo, alterar os alicerces já estabelecidos pelos criadores, mas acrescentando elementos novos, como a anti-heroína Elektra, antigo amor dos tempos de faculdade de Matt Murdock e que retorna a Nova York como uma assassina de aluguel, e Stick, um velho cego que foi uma espécie de mentor para Matt quando ele sofreu o acidente que tirou sua visão, ensinando-o a controlar seus sentidos ampliados. E Miller foi ainda mais longe ao desconstruir a versão de bom pai de Jack "Batalhador" Murdock, ao revelar que o pai de Matt era um homem falho e com problemas de violência. Falarei mais sobre este último tópico mais adiante nesta resenha.

Frank Miller começou a trabalhar com o Demolidor primeiramente como desenhista, em 1979, e em 1981 assumiu também os roteiros; a partir de então não apenas salvou o título do cancelamento, como também alçou o Demolidor ao patamar dos heróis mais populares da Marvel. Um dos motivos que fez com que esta fase alcançasse tamanho sucesso foi porque, dentre outros fatores, Frank Miller redefiniu o tom da revista, deixando para trás a inocência da Era de Prata para desenvolver enredos mais ácidos e pessimistas, e estabeleceu um padrão que seria seguido pela maioria dos roteiristas de quadrinhos nos anos seguintes. Ele conseguiu alcançar em seus roteiros o equilíbrio perfeito entre uma história de super herói, com todas as suas características clássicas, e uma trama policial noir, que é o tipo de história com o qual ele sempre preferiu trabalhar, mas que não tinha muito espaço dentro dos quadrinhos mainstreen. O Demolidor deixou de enfrentar vilões extravagantes e fantasiados para lidar com criminosos de rua, traficantes de drogas e gangsteres, como Wilson Fisk, o Rei do Crime, o qual foi brilhantemente trabalhado pelo autor para ser o maior adversário do Demolidor. Isso não quer dizer que os antigos vilões mascarados tenham sido completamente abolidos das histórias; pelo contrário, eles passaram a ser utilizados sob uma nova ótica, como o Mercenário, que se transformou em um assassino psicopata obcecado por destruir o Demolidor, e o Gladiador, que se regenerou e começou a fazer terapia para tratar de sua loucura.

Outra característica marcante da passagem de Miller por Demolidor é a arte. Os desenhos de Miller são inovadores, seu estilo de desenhar e a forma como ele utiliza os quadros potencializam e complementam a narrativa, lembrando muito o estilo do lendário Will Eisner. Mas nem todo o crédito pertence ele, já que em quase todas as edições ele contou com a colaboração de Klaus Janson, que, apesar de ter ficado a cargo da finalização da arte, recebeu cada vez mais liberdade conforme o autor se dedicava mais aos roteiros. Nas últimas edições Janson respondia por quase toda a arte, enquanto Miller apenas lhe entregava esboços.

A épica fase de Miller como artista e roteirista da revista Demolidor foi publicada na íntegra pela Panini Comics em três encadernados de luxo. Eu já avaliei os dois primeiros volumes, e o leitor poderá acessar estas resenhas clicando aqui aqui. O terceiro volume engloba as edições #183 a #191 e uma edição What if? #28, que mostra uma realidade alternativa onde o Demolidor se torna um agente da S.H.I.E.L.D. É uma historinha divertida, porém nada mais do que isso, portante não irei falar mais sobre ela nesta resenha.

Demolidor vs. Justiceiro

O terceiro volume começa com uma história que ilustra muito bem o tom mais maduro do roteiro de Miller, quando vemos o Demolidor tendo que lidar com um problema que assolava as grandes metrópoles americanas naquela época, e que ainda é um dos grandes desafios da nossa sociedade atual: o tráfico de drogas. Para piorar ainda mais a situação, temos a chegada do vigilante Justiceiro a Nova York, após ele ter fugido da prisão na última edição do volume anterior (fato que deixar passar batido em minha resenha, sorry!). Apesar de fazerem praticamente a mesma coisa - combater criminosos -, Demolidor e Justiceiro divergem na forma como lidar com os bandidos. O Demolidor, sendo um advogado em sua identidade civil de Matt Murdock, acredita fielmente no sistema judiciário, a quem confia o destino dos malfeitores, enquanto Frank Castle, movido por um desejo de vingança pela morte de sua família, vive uma cruzada solitária na qual ele é juiz, júri e executor. A concepção de ambos possui falhas, já que o sistema judiciário pode ser manipulado para que um indivíduo culpado seja absolvido, e um homem com sede de justiça pode ser enganado pelas circunstâncias e assassinar uma pessoa inocente. Esta história serve principalmente para definir de uma vez por todas um importante aspecto do código moral do Demolidor, que é o de não matar criminosos.

Além do Justiceiro, neste volume temos a participação de outra personagem do universo Marvel: a Viúva Negra. No passado ela e o Demolidor foram parceiros no combate ao crime por um tempo, além de amantes, e agora ela volta a Nova York durante uma investigação aos misteriosos ninjas do Tentáculo. O retorno da desta organização marca o início da conclusão da saga iniciada lá em Demolidor #168, quando fomos apresentados à Elektra. Desde que apareceu pela primeira vez, Elektra rapidamente conquistou uma legião de fãs, por vários motivos: seu visual era impressionante; seu estilo de lutar era único nos quadrinhos até então (naquela época ninjas, katanas, shurikens e sais não eram muito comuns em histórias ocidentais, e Frank Miller foi um dos principais divulgadores desta cultura nos EUA); sua relação de amor/ódio com o Demolidor não seguia o velho padrão do herói e da mocinha indefesa; e por fim, tinha o seu comportamento. Naquela época estava se popularizando o conceito dos anti-heróis, os quais transitavam na zona cinzenta entre o bem e o mal, desempenhando o papel de vilão ou de herói de acordo com seus interesses.

Apesar do amor dos fãs por Elektra, o destino da moça já estava traçado na cabeça do autor: para sua história funcionar, ela precisava morrer. E, para desespero dos leitores, ele concretizou esta ideia ao fazer o Mercenário assassiná-la, empalando-a com suas próprias adagas em Daredevil #181. Esta morte causou um grande alvoroço no mundo dos quadrinhos, principalmente reações de ódio a Frank Miller por ter matado uma das raras personagens femininas fortes da época. Muitos fãs também criticaram o autor por ter usado o infame artifício narrativo conhecido hoje como "mulher na geladeira¹", que consiste em provocar algum tipo de violência a uma personagem feminina apenas para atingir o protagonista homem (Alan Moore sofreu o mesmo tipo de crítica quando decidiu fazer o Coringa aleijar e estuprar Barbara Gordon em Batman: A Piada Mortal).

O Tentáculo Ataca

Seja como for, no mundo dos quadrinhos a morte raramente é definitiva e, algumas edições depois, Miller começou a preparar o terreno para a volta de Elektra do mundo dos mortos, e os ninjas do Tentáculo desempenharam um importante papel na ressurreição da moça, bem como um personagem que havia sido apresentado no volume anterior, o antigo mentor de Matt. Stick era na verdade o líder de um grupo de ninjas chamados Virtuosos (The Chaste, no original), os quais eram os principais antagonistas do Tentáculo. Muita coisa é revelada sobre o passado de Elektra neste arco, e passamos a entender um pouco mais os motivos que a fizeram empregar suas habilidades para matar pessoas, ao invés de protegê-las, como o Demolidor.

Como era de se esperar, Elektra ressuscita, porém sem que o Demolidor saiba que ela retornou, e a jovem, agora com um novo visual, deixa Nova York para viajar pelo mundo, jurando nunca mais rever seu amor. Na verdade, Frank Miller, seja lá por qual motivo - emocional ou comercial - não queria que sua criação fosse utilizada em outras histórias, fossem do Demolidor ou de outro herói da editora, e para isso fez um acordo com o então editor Raph Macchio para que seu desejo fosse respeitado. Este acordo valeu por dez anos, até que a Marvel, durante a crise financeira pela qual a editora passou na década de 90, resolveu trazer de volta a personagem, contrariando Frank Miller, que após isso rompeu de vez com a Casa das Ideias.

Voltando à década de 80 e aos tempos áureos de Miller à frente do Demolidor, a saga da ressurreição de Elektra também trouxe a conclusão do embate do Demolidor com o Rei do Crime. Talvez os fãs que esperavam uma solução mais definitiva tenham ficado um pouco decepcionados, já que este confronto permaneceu em um impasse. Wilson Fisk é muito poderoso para ser derrotado por um único homem, que, como já foi visto, não tem como modus operandi matar seus adversários; mas, por outro lado, ele também precisa do Demolidor para aterrorizar seus subordinados e fazê-los pensar que precisam de seu comando e proteção. Sendo assim, herói e vilão estão presos um ao outro, e ainda terão muitos embates nos anos vindouros, o maior deles também escrito por Frank Miller e considerado a melhor história do Demolidor: A Queda de Murdock.

Roleta Russa

Por último, não posso finalizar esta resenha sem falar sobre a melhor história deste encadernado, e também considerada por muitos a melhor edição escrita por Miller durante esta primeira fase na qual ele esteve à frente da revista do Demolidor. Nesta edição inteiramente desenhada por Miller e arte-finalizada por Terry Austin, o herói visita o Mercenário, que encontrava-se tetraplégico desde a última luta entre os dois, e ambos começam a jogar Roleta Russa, enquanto o Demolidor conta para seu inimigo uma trágica história sobre um menino que era fascinado pelo herói e seu vilão. Neste conto Miller desmascara todo o glamour que envolve o conceito dos super heróis para expor a verdadeira natureza destes indivíduos: a de que eles não passam de valentões usando os punhos para conseguir o que querem, e que esta imagem violenta é vendida como exemplo para as crianças. Para ilustrar este fato, Miller desmistifica a natureza altruísta do pai de Matt Murdock, até então considerado a principal inspiração do herói, revelando que Jack "Batalhador" Murdock era um homem com problemas alcoólicos e comportamento abusivo, e chegou a agredir o filho quando era criança. Roleta Russa é a história mais sentimental e psicológica de toda esta fase de Frank Miller à frente do Demolidor, e deixou uma importante lição: a de que heróis não são perfeitos, eles podem cometer erros, e estes erros podem influenciar as pessoas que acreditam e contam com eles.

Esta fase do Homem Sem Medo foi muito importante não só para a mitologia do herói cego da Marvel, como também fez parte do movimento que revolucionou a indústria dos quadrinhos na década de 80, o qual mudou a percepção das pessoas de que gibi é coisa de criança, e que os quadrinhos poderiam evoluir para contar histórias mais maduras, que jovens e adultos pudessem ler. Frank Miller esteve na vanguarda deste movimento, sendo o responsável por duas obras icônicas que quebraram paradigmas: Demolidor: A Queda de Murdock e Batman: O Cavaleiro das Trevas. Esta fase de Miller e Janson também inspirou adaptações do personagem para outras mídias, como o infame filme de 2003 estrelado por Ben Afflexk, e a consagrada série de TV produzida pela Netflix. Há ainda diversos personagens e arcos sobre os quais eu não falei ao longo destas três resenhas pois, se fosse falar de todos eles, meus textos ficariam maiores do que já estão. Recomendo a quem ficou interessado que vá ler o material fonte, que se encontra facilmente disponível em qualquer loja de quadrinhos. Boa leitura!

Capa do Volume 3
Notas:

1 - O termo "Mulher na Geladeira" surgiu por causa de um evento que ocorreu na edição #54 de Lanterna Verde, de 1994. Nesta história o substituto de Hal Jordan, Kayle Rayner, ao chegar em casa descobre que sua namorada havia sido assassinada pelo Major Força, o qual esquartejou a moça e colocou os pedaços dela na geladeira para provocar o herói. Saiba mais em http://nodeoito.com/mulheres-na-geladeira.

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