segunda-feira, 27 de junho de 2016

[RESENHA] John Constantine, Hellblazer - Origens Volume 1: Pecados Originais


Em 1985 o aclamado quadrinista Alan Moore apresentava ao mundo, na fatídica edição 37 da revista Monstro do Pântano, um personagem que, embora fosse apenas um coadjuvante, nascera para brilhar como protagonista em seu próprio título. Seu nome era John Constantine, inglês oriundo da classe trabalhadora de Liverpool, e sua aparência, como os próprios criadores admitem, foi inspirada no vocalista da banda - também britânica - The Police, o Sting. Na maior parte das vezes ele usa um sobretudo bege surrado, e quase sempre é visto com um cigarro da marca silk cut nos lábios ou nos dedos. O que mais chamou a atenção do público, porém, não foi o seu visual, que pode ser considerado até comum e despretensioso para um personagem de quadrinhos, nem seus poderes - apesar de possuir um vasto conhecimento de magias ocultas, ele não costuma utilizar feitiços e encantamentos contra seus adversários, a não ser que seja forçado; o que fez John Constantine cair nas graças dos leitores e angariar uma legião de fãs pelo mundo foi o seu caráter duvidoso, o humor ácido, seu olhar cínico em relação ao mundo e a sociedade, e a astúcia com que manipula inimigos e aliados, sejam eles humanos, metahumanos, anjos ou demônios, para conseguir realizar seus objetivos.  Todas estas características o incluem no seleto grupo dos anti-heróis, dos quais ele foi um dos primeiros representantes nas histórias em quadrinhos.

Embora Alan Moore e os artistas Stephen Bissete e John Totleben tenham sido os responsáveis pela criação de Constantine, coube ao quadrinista inglês Jamie Delano a audaciosa e desafiadora missão de escrever os roteiros para a revista solo do anti-herói, intitulada Hellblazer, publicada sob o selo Vertigo da DC Comics. Enquanto os primeiros lançaram os fundamentos da construção deste incrível personagem, foi Delano quem consolidou as bases da mitologia do personagem e pavimentou o caminho para os seus sucessores, ao revelar alguns episódios do seu misterioso passado de Constantine, como o famigerado exorcismo que deu errado em Newcastle, o qual ajudou a explicar muito do caráter e motivação do anti-herói. Foi Delano quem apresentou pela primeira vez alguns personagens que iriam fazer parte da vida do protagonista, como o sempre presente taxista Chas, que se pode considerar o mais próximo de um amigo que ele tem, seus parentes mais próximos, como sua irmã Cheryl e a sobrinha Gemma, além da paranormal Zed e do criminoso feiticeiro Papa Meia-Noite.

A publicação de Hellblazer no Brasil, como tudo o mais na república das bananas, foi uma verdadeira zona. Números descontinuados e mudanças constantes de editoras fizeram da vida de quem queria acompanhar as desventuras do mago da DC um verdadeiro inferno. A própria fase Delano só teve os primeiros números publicados na revista do Monstro do Pântano, até que, anos depois, a Panini resolveu lançar uma coleção de encadernados com estas histórias, chamada John Constantine, Hellblazer - Origens. E é sobre o primeiro volume desta coleção que eu irei falar nesta resenha. Intitulada Pecados Originais, este encadernada reúne as seis primeiras edições da revista Hellblazer.

Constantine Enfrenta Mnemoth

Nas duas primeiras edições, Constantine precisa enfrentar Mnemoth, o espírito da fome, que está à solta nas ruas de Nova York graças à estupidez de um velho amigo dos tempos em que ele era vocalista da banda Membrana Mucosa: o viciado em heroína Gary Lester. A temática escolhida pelo autor para este capítulo é uma boa deixa para abordar os aspectos mais vis e decadentes da condição humana: a "fome" trabalhada por Delano engloba não apenas a necessidade física, mas as compulsões mais baixas do ser humano, como o vício em drogas, o desejo irracional por riquezas, o fanatismo religioso, e até mesmo a busca incessante pela forma física ideal. A arte crua e suja, repleta de rabiscos e hachuras de John Ridgway consegue imergir o leitor no mundo depravado e desprovido de valores morais por onde Constantine transita. Ela também consegue transmitir o clima de terror imprimido pelos roteiros de Delano, com seus exorcismos, demônios, viagens ao inferno, fantasmas e magia negra. A imagem que mostra Constantine encontrando Gary Lester em sua banheira, com o corpo coberto de insetos, provoca mais asco e choque do que terror propriamente dito.

Aqui vemos um Constantine atormentado pela culpa; quem acompanhou a saga Gótico Americano já pôde ter uma boa ideia do destino cruel daqueles que acabam chegando muito perto dele, e não é diferente desta vez: o ritual para deter Mnemoth envolve o sacrifício de mais um de seus "amigos". Para piorar, os fantasmas do passado voltam para lembrá-lo de seus pecados. Ciente de que a absolvição é apenas uma ilusão, ele procura o esquecimento no fundo de garrafas de uísque barato.

Os roteiros de Delano vão além do horror e suspense; o escritor, como a maioria dos quadrinistas britânicos de sucesso daquela época, como Alan Moore e Neil Gaiman, era um ferrenho crítico do conservadorismo de direita que dominava a Inglaterra de Margareth Tatcher em meados dos anos 1980, e das consequências sociais e econômicas que essas políticas causaram para os menos favorecidos. Como representante legítimo das massas, Constantine acaba se mostrando um canal perfeito para o autor extravasar as suas ideias. Este volume possui várias histórias assim, sendo as mais conhecidas, pela contundência com que os temas são tratados, Correndo Atrás e Quando Jonny Volta Marchando Para Casa.


Constantine Desafia Blathoxi

Na primeira Delano faz uma sátira ao modo de vida materialista da classe média inglesa da década de 1980, principalmente entre os yuppies. Para quem não sabe, a palavra yuppie vem da sigla YUP (jovem profissional urbano, já traduzido) e é um estereótipo para o grupo de jovens adultos bem sucedidos financeiramente, cujo principal comportamento é a busca incessante pelo sucesso profissional, e com isso possuir os melhores carros, as roupas da moda, os lançamentos tecnológicos mais recentes. São o completo oposto dos hippies, da geração anterior (anos 1960 e 1970). Nesta trama, demônios liderados pelo asqueroso Blathoxi negociam as almas dos yuppies desesperados por enriquecer rapidamente como se fossem ações em uma bolsa de valores. É brilhante o parelelo criado pelo autor quando compara as atitudes de certas pessoas, que deixam de lado valores importantes como amor próprio, dignidade, família e amigos, em troca de dinheiro e bens materiais, com a barganha feita entre os yuppies da história e Blathoxi: suas almas em troca de riquezas, mesmo isso significando vidas mais curtas. A forma como Constantine consegue derrotar Blathoxi é prova de que força bruta nem sempre resolve todos os problemas; às vezes é preciso ter astúcia e uma boa dose de coragem.

Quando Jonny Volta Marchando Para Casa é, na minha opinião, a melhor história deste encadernado. Nela o autor traz à tona os horrores da Guerra do Vietnã, mostrando um outro lado da guerra que não aparece nos filmes de Hollywood; um lado onde o altruísmo e a bravura americanos tão exaltados nas telas são substituídos pela selvageria e covardia praticados por soldados desesperados, presos em uma guerra que não era deles, em solo estrangeiro e nas piores condições, e dominados pela tensão de não saberem até quando permaneceriam vivos. A crítica fica bem clara quando, no epílogo, Constantine observa um ex-combatente preso a uma cadeira de rodas, incapaz de realizar as tarefas mais simples, parado diante de uma vitrine de uma locadora de filmes com o cartaz: "Filmes que mostram como foi de verdade!"

Outro ponto abordado por Delano foram as consequências do conflito para aqueles que conseguiram retornar para casa, muitos deles com sequelas físicas e psicológicas; ao contrário do que aconteceu com seus pais ao voltarem da Segunda Guerra Mundial, estes soldados não foram recebidos como heróis, mas como párias, assassinos e genocidas. Nesta história, que se passa em uma cidadezinha do meio oeste americano chamada Liberty, Constantine testemunha o caso de Frank Ross, o único dos jovens da cidade a retornar do Vietnã, e justamente por isso ele é o mais odiado da cidade. Para piorar, os pais daqueles jovens que jamais retornaram, agora idosos, são convencidos por uma seita fundamentalista de que os filhos perdidos irão voltar para casa. Num esquema de deixar o bispo Macedo com inveja, os velhinhos iludidos participam de um esquema de pirâmide (para saber o que é isso, clique aqui) e acreditam que o milagre vai acontecer. O problema é que, quando os rapazes voltam, eles trazem a guerra consigo, transformando a pacata Liberty em uma "vietnamérica". A técnica narrativa de Delano ao mostrar cenas do passado se repetindo no presente é sensacional, a forma como os eventos se sucedem até culminar no explosivo desfecho que, apesar de chocante, também conforta pela redenção encontrada por um dos personagens.

Zed

À Espera do Homem marca o início da primeira grande saga de Hellblazer, durante a qual Constantine entra no fogo cruzado entre a Cruzada da Ressurreição e o Exérito da Danação, duas seitas, cristã e satanista, respectivamente, que estão em guerra pelo domínio espiritual do mundo. Ele acaba se envolvendo no conflito quando um maníaco pedófilo e satanista, membro do Exército da Danação, sequestra sua sobrinha Gemma. É nesta saga que J. C. conhece Zed, uma mulher intrigante que possui muitas características em comum com ele, incluindo o dom da paranormalidade, e que o ajuda a encontrar Gemma. O encontro dos dois acontece meio que por acaso, mas será que no mundo de Constantine existem coincidências? Como a própria Zed disse: "Eu estava esperando. Você me encontrou. Eu não sei o que eu estava esperando, você não sabe o que encontrou." Não demora muito para ele descobrir que a mulher, assim como ele, possui muitos segredos, e que está no centro da disputa entre o Exército da Danação e a Cruzada da Ressurreição.

O Monstro do Preconceito

Preconceito Extremo encerra este volume com um enredo que aborda o problema do preconceito sofrido por imigrantes, principalmente muçulmanos, e pelos homossexuais, pelos membros de grupos radicais de direita na Inglaterra. Delano usa a figura dos hooligans, jovens torcedores de times de futebol conhecidos por seu vandalismo e violência exagerada, para encarnar o preconceito abordado por ele, devido ao fato de muitos destes rapazes serem envolvidos com grupos de neonazistas, skinheads e radicais conservadores que canalizam seu ódio contra qualquer um que não seja europeu, branco e heterossexual. Nesta trama Nergal, demônio líder do Exército da Danação, envia uma bizarra criatura constituída por partes de corpos remendados de hooligans para capturar Zed.

Apesar de ter sido escrita na década de 1980, esta história não poderia ser mais atual: não faz muito tempo que acompanhamos nos noticiários internacionais e na Internet a situação delicada dos refugiados de guerra na Europa, e como isto está afetando a vida de todos no Velho Mundo, bem como os casos de homossexuais que são vítimas de violência unicamente por serem diferentes. Em pleno século XXI, quase 30 anos após esta história ter sido escrita, ainda hoje somos surpreendidos ao ligarmos nossas TV's, computadores ou smarthphones e descobrirmos que um lunático assassinou a sangue frio 50 pessoas simplesmente pelo fato deles decidirem ter relações com pessoas do mesmo sexo. Quando lidamos com estes fatos é que percebemos que, apesar de toda a evolução científica e tecnológica que vivenciamos ao longo dessas décadas, a mentalidade do ser humano evoluiu muito pouco.

Com roteiros adultos e complexos, e tramas baseadas no gênero do horror sobrenatural com boas doses de suspense, embora a arte não agrade a muitos, este é um material recomendadíssimo para aqueles que querem se iniciar nas histórias do mago mais carismático e cafajeste das HQ's. Como já mencionei anteriormente, esta HQ está sendo publicada pela Panini Comics em uma coleção de 7 encadernados, todos em capa cartão e papel pisa britte, o que causou algum descontentamento entre alguns colecionadores, já que este tipo de papel possui menor qualidade que o LWC, mais comumente usado neste tipo de publicação. No entanto, a Panini apenas seguiu o padrão norte-americano, que também adotou este tipo de papel, por ser mais adequado ao método de colorização adotado na época.

Boa leitura!

Capa de Hellblazer Origens Vol.1

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