segunda-feira, 1 de abril de 2019

Batman 80 Anos - O Nascimento de um Mito


Este ano o Batman comemora 80 anos desde sua estreia, na edição de número #27 da revista Detective Comics (capa acima), publicada então pela National Comics, que mais tarde viria a se tornar a DC Comics. Sua criação veio como uma resposta a outro grande super herói, na verdade o primeiro de todos, que havia sido apresentado ao mundo quase um ano atrás na revista Action Comics #1: o Superman. A fim de aproveitar o rastro do sucesso estrondoso do herói azul e vermelho, a National Comics encomendou ao artista Bob Kane a criação de outro super herói que rivalizasse com o Superman, e assim nasceu o Bat-Man (isso mesmo, com hífen).

Segundo Kane, as principais inspirações para a concepção do personagem foram os heróis dos pulps¹ como Zorro, o Sombra e Sherlock Holms, além de um esboço de asas mecânicas semelhantes às de um morcego (ornitóptero) projetadas por Leonardo Da Vinci, e o vilão do filme The Bat Whispers, de 1930. Porém, hoje se sabe que Bob Kane não foi o único criador do personagem, embora por décadas a DC Comics tenha creditado apenas a ele este feito. O roteirista Bill Finger teria sido o responsável por dar a ele o visual pelo qual o conhecemos atualmente, uma vez que o primeiro esboço de Bob Kane mostrava um herói com roupas vermelhas, asas de morcego e máscara apenas nos olhos; foi Finger quem imprimiu o tom mais noir e detetivesco das histórias, além de ter criado a identidade civil de Bruce Wayne. Como a justiça tarda mas não falha, em 2015 Finger passou a receber créditos pela criação conjunta do herói (é claro que ele não estava mais vivo para receber tais créditos).

Primeira Versão do Batman

As histórias do Batman possuíam um tom bem mais sombrio do que as do Superman. Desprovido de superpoderes, o Batman precisava contar apenas com suas habilidades físicas e mentais, além de todo um aparato tecnológico para resolver seus casos. Assim como a criatura que escolheu como símbolo, ele preferia agir à noite, de forma furtiva, pegando seus adversários de surpresa. Mais do que um super herói propriamente dito  ele era um Detetive.

Nestes primeiros anos de sua trajetória nos quadrinhos, o Batman ainda não seguia o código moral que pautaria suas ações nas décadas futuras e que faria parte da prórpria essência do personagem: além de matar seus inimigos, ele não se incomodava em portar pistolas, algo que também viria a ser um tabu para o personagem no futuro, dado que seus pais haviam sido mortos por uma arma de fogo. Em diversas ocasiões nesssas primeiras aventuras ele mata seus adversários, ou permite que morram, das mais variadas formas. Tortura psicológica também fazia parte do repertório: em Detective Comics #28 vemos ele usar pela primeira vez o expendiente clássico de pendurar o bandido no alto de um prédio por uma corda para obter informações, numa cena praticamente igual à que Christopher Nolan utilizou no seu filme O Cavaleiro das Trevas, de 2008.

As Várias Vezes em que Batman Matou

Vários elementos consagrados da mitologia do herói foram sendo acrescentados ao longo dessas primeiras edições. O Comissário de Polícia Jim Gordon aparece logo na primeira história, mas a cidade em que as histórias se passavam era Nova York, e não Gotham City. Gotham somente seria mencionada na edição #4 da revista Batman, em 1940. Embora apareça na capa da edição #27, é somente no número seguinte que vemos Batman se balançando pelos prédios com sua "bat-corda", que ele também usa para laçar os bandidos. O famoso cinto de utilidades é apresentado na edição #29, juntamente com cápsulas de gás usadas para atordoar os inimigos. Na edição #31 os leitores são apresentados às primeiras versões do "Bat-plano", primeiro veículo oficial do Morcego para se deslocar pela cidade (antes ele utilizava um automóvel comum) e do "batarangue", o famoso bumerangue em forma de morcego. Em 1940, na edição #37, o Batman já usava óculos de visão noturna para poder enfrentar seus inimgos na mais completa escuridão.

Primeiras aparições: batplano e batarangue

A origem do Batman foi finalmente revelada em Detective Comcis #33, e praticamente não houve grandes alterações desde então: o assassinato dos Waynes por um bandido comum, o juramento do jovem Bruce de lutar contra o crime, seu treinamento, e a inspiração para o uniforme estão todos lá, condensados em uma única página!

A estreia de Robin não tardou a acontecer. O Menino Prodígio foi apresentado na edição #38 de Detective Comics, como uma forma de atrair leitores mais jovens para a revista, já que as aventuras solo do Morcego eram voltadas para um público mais adulto. Ele trouxe um colorido e uma leveza para a série, o que fez com que uma parcela dos fãs até hoje o odiassem, pois ele teria desta forma alterado a essência do Batman.

Surge o Robin

Finalmente, não poderia deixar de falar dos vilões, pois quem seriam os super heróis sem seus arqui-inimigos? Afinal, não dizem por aí que um herói é medido pela estatura de seus vilões? Isso não poderia ser diferente para o Batman,  que possui a galeria de vilões mais formidável dos quadrinhos.

O primeiro adversário de peso enfrentado pelo Batman em suas primeiríssimas aventuras foi o Dr. Morte. Hugo Strange foi introduzido pouco tempo depois, em Detective Comics #36. Somente na primeira edição da revista Batman, lançada em abril de 1940, que os leitores conheceriam o maior inimigo de todos os tempos do Batman: o Coringa. Nesta mesma edição a Mulher Gato também fez a sua estreia, embora com um visual bem diferente do que conhecemos hoje. O Pinguim e Duas Caras também foram criações de Bob Kane, fechando o núcleo mais clássico da galeria de vilões do Batman.

Primeira Aparição do Coringa

Como o leitor pode ter percebido, todo o arcabouço principal da mitologia do Batman foi estabelecido nestes primeiros anos de publicações, pelas mentes de seus criadores, os quais ergueram a base sobre a qual outros iriam trabalhar, na construção de um verdadeiro universo que está sempre em expansão e aperfeiçoamento. Embora não se saiba ao certo o que foi criação quem, o fato é que Bob Kane e Milton "Bill" Finger foram os criadores de um verdadeiro mito os tempos modernos, um personagem que sobreviveu à passagem dos anos, à censura, à tentativas de difamação e à famigerada série de TV de 1966, e até hoje arrebanha uma legião de fãs, das mais variadas idades.

Vida Longa ao Morcego!


sexta-feira, 29 de março de 2019

Justiceiro: No Princípio



O Justiceiro (Punisher, no original) é um dos meus personagens favoritos da Marvel Comics, atrás apenas do Demolidor. Ele não é um herói no sentido estrito da palavra, afinal, não é comum ver heróis estourando o crânio de criminosos com uma escopeta, mas possui um senso moral bastante claro: infligiu a lei ou se associou com criminosos, então é vala. Simples assim - sem julgamento, sem apelação, sem segundas chances. O motivo para isso, é claro, encontra-se por trás de uma tragédia pessoal: Frank Castle, alter-ego do Justiceiro, era um ex-fuzileiro norte americano que lutou na Guerra do Vietnã e que, após voltar do conflito, viu sua esposa e filhos serem brutalmente assassinados diante de seus olhos, pegos no fogo cruzado entre duas gangues rivais. A partir de então ele passou a viver em uma constante guerra de um homem só contra todo tipo de crime, guerra esta que só acabará no dia em que ele morrer, e talvez nem assim (já explico).

O Justiceiro estreou nos quadrinhos em meados da década de 70, inicialmente como um vilão do Homem Aranha, mas depois assumiu o status de anti-herói, aparecendo de vez em quando nas páginas do Cabeça de Teia. Só em 1986 o Justiceiro ganharia uma revista própria e teria seu verdadeiro nome revelado. Ele passou por vários roteiristas, teve boas e más fases, a pior delas quando ele morre e se transforma em uma espécie de anjo vingador matador de demônios. Que fase hein! Mas então, em meados dos anos 2000, o escritor irlandês Garth Ennis (Hellblazer, Preacher) recebeu a incunbência de tocar a revista do Justiceiro. E não poderia haver casamento mais perfeito entre escritor e personagem: o estilo de escrita de Ennis, com toda sua violência, personagens bizarros e situações inusitadas, tudo isso misturado com críticas políticas ácidas à sociedade moderna, combinaram perfeitamente bem com as histórias do Justiceiro. Para ficar ainda melhor, o escritor também ficou responsável pelas histórias do anti-herói no selo MAX da Marvel, voltado para o público adulto. Neste selo, todos os limites criativos foram removidos e Garth Ennis pôde levar o Justiceiro ao limite. Justiceiro - No Princípio, lançado em 2018 pela Panini Comics, é um encadernado de luxo de reúne os dois primeiros arcos desta série, mais a minissérie especial Born.

Capitão Frank Castle no Vietnã

Em Born (Agosto/2003) acompanhamos o capitão Frank Castle já no final da Guerra do Vietnã. Ele é retratado como um viciado em combate, alguém que não aceita que o conflito está no fim, simplesmente porque quer continuar apertando o gatilho. Esta história também levanta uma pergunta muito interessante sobre a origem do Justiceiro: será que ele se tornou quem é por causa do assassinato de sua familía, ou esta tragédia teria sido apenas o catalisador para o desejo pela violência que já existia antes?

A arte de Born ficou a cargo de Darick Robertson, que retrata de forma fidedigna os cenários tropicais do Vietnã e as cenas de combate na selva, recheadas de violência explícita.

Após um breve texto explicando o contexto do período da Guerra Vietnã em que Born se passa, e que agrega bastante valor a este volume da Panini, temos os dois primeiros arcos de Justiceiro MAX: No Princípio (edições 1 a 6) e Inferno Irlandês (edições 7 a 12).

O Justiceiro

No Princípio (Março/2004) começa com mais um dia comum de trabalho na vida do Justiceiro: ele invade uma festa de aniversário do chefão da máfia italiana e chacina praticamente todo mundo lá. Ele então acaba virando alvo de um assassino da máfia chamado Nick Cavella e de uma célula da CIA, que para capturá-lo conta com a ajuda de seu antigo ajudante, o hacker conhecido como Micro. Uma das melhores partes deste arco é justamente o intenso diálogo entre Frank e Micro, que Garth Ennis usa para tecer críticas às campanhas militaes americanas pós-11 de Setembro. E, embora seja muito prazeroso assistir (sim, eu leio este quadrinho como se estivesse asssistindo a um filme de ação!) o Justiceiro sentar bala em todo tipo de bandido, o escritor deixa claro que este desejo de sangue e justiça encarnado pelo Justiceiro e que inspira tantos da "nova direita" brasileira, não passa de um instinto natural, uma espécie de alívio ou desejo por compensação diante de tanta dor causada pelo crime, pois este nunca terá fim, já que é uma condição natural da humanidade. Você mata um, e outros dois ocupam seu lugar. E justamente por causa desta guerra sem fim Frank Castle se tornou um homem amargurado, incapaz de viver uma vida de felicidade.

Mas este arco não traz apenas diálogos, senão não estaríamos falando de um enredo assinado por Garth Ennis. Os personagens únicos, como os capangas Caneta e Pitsy, e as cenas absurdas, como quando o agente Roth tem suas bolas literalmente arrancadas, estão lá. Além disso, há muitas, muitas cenas de tiroteio, com direito a tripas e globos oculares voando para todos os lados, tudo isso retratado na arte incrível de Lewis Larosa.


Em Inferno Irlandês (Agosto/2004), Garth Ennis aborda um tema recorrente em suas histórias: as mazelas vividas pelos imigrantes irlandeses na América. Esta história é curiosa porque nela o Justiceiro é um coadjuvante, alguém que caiu de paraquedas no meio de um conflito entre quatro gangues irlandesas da Cozinha do Inferno que estão disputando a herança de um velho chefão do crime. Mais uma vez Ennis surpreende com personagens no mínimo incomuns, como um irlandês negro (os criminosos irlandeses nunca foram muito chegados nos "manos"), uma gangue de piratas do rio e um ex-terrorista que sobreviveu à explosão de uma bomba, mas que ficou com o rosto desfigurado. A arte deste arco ficou com Leandro Fernandez, que faz um excelente trabalho.

Justiceiro em Ação

Justiceiro - No Princípio, apresenta a versão definitiva do Justiceiro, sob o olhar do escritor irlandês Garth Ennis. Com histórias mais "pé no chão" e focadas no mundo real, ainda assim o estilo único do roteirista se destaca, com seu humor ácido e violência gráfica explícita. Esta versão do maior anti-herói da Marvel também serviu de inspiração principal para a série da Netflix estrelada por John Bernthal. Por fim, vale destacar o excelente trabalho realizado pelo capista Tim Bradstreet, que deu uma marca especial à série.

Capa de Punisher MAX 1 e do Volume 1 da coleção da Panini

domingo, 22 de abril de 2018

Batman: Cataclismo e Terra de Ningém



Não é fácil morar em Gotham City. Assolada por todo tipo de criminosos, desde gangues de traficantes a assassinos fantasiados mentalmente insanos, o lar do soturno vigilante conhecido como Batman já foi o marco zero de uma epidemia de ebola que quase dizimou a sua população. Como se isto não bastasse para obrigar até o mais corajoso cidadão a fazer as malas e se mandar para Metrópolis ou Central City, Gotham também foi o epicentro de um terremoto de 7.6 pontos na escala Richter que transformou a cidade em uma grande pilha de escombros e a mandou de volta à Idade das Pedras. 

Numa época em que o cinema catástrofe estava na moda (filmes como Volcano, Twister e Armageddom são apenas alguns exemplos), um time de roteiristas composto por Alan Grant, Doug Moench e Chuck Dixon resolveu trazer o tema para as páginas dos quadrinhos. Só havia um pequeno probleminha de ordem geológica com esta ideia: para quem não sabe, Gotham City supostamente estaria localizada na costa leste dos Estados Unidos, perto de Nova York e Washington, uma região do país em que terremotos não são nem um pouco comuns - eles costumam acontecer lá pelas bandas da costa oeste, tipo na Califórnia. Tal fato, porém, não impediu os distintos roteiristas de apostar na ideia de um grande terremoto atingindo a cidade do Cavaleiro das Trevas.

Cataclismo, como ficou conhecida esta saga, foi um grande crossover que se desenrolou nas páginas das revistas Batman, Detective Comics, Shadow of the Bat (A Sombra do Morcego), Asa Noturna, Azrael, Mulher Gato e Robin, nos meses de março e abril de 1998. Na primeira parte deste arco acompanhamos o mesmo evento - o terremoto - sob a ótica do Batman e seus afiliados. Enquanto o Homem Morcego precisa escapar da destruição da mansão Wayne e da Batcaverna, os outros membros da batfamília precisam fazer das tripas o coração para resgatar o maior número possível de civis dos desmoronamentos. A segunda parte é focada na busca por um "novo" vilão que alega ter sido o responsável pelo terremoto e ser capaz de provocar um segundo, caso suas exigências não sejam atendidas. Em um universo em que coexistem seres capazes de destruir toda uma cidade (ou até mesmo o planeta), ninguém duvida de tais alegações, e aqui vemos o Batman assumir o perfil de detetive para descobrir a identidade deste vilão. O final desta história só prova o quanto os criminosos de Gotham City são os mais criativos e ousados de todo o Universo DC. 



Capa da versão americana de Cataclismo

A arte de Cataclismo é bastante afetada pelo formato da série, em que artistas diferentes contribuem com os desenhos em cada edição. Isto gera uma falta de uniformidade que acaba afetando a qualidade da obra como um todo. A grande importância de Cataclismo, porém, foi ela ter sido o ponto de partida para a grandiosa maxissérie que conduziu o universo do Morcego dos tenebrosos anos 90 para os ares mais frescos do século 21: Terra de Ninguém

Nesta história, o governo dos EUA, influenciado pela opinião de que Gotham não valia o esforço de reconstrução devido ao seu extenso histórico de criminalidade e corrupção, decide abandonar a cidade e decretá-la "Terra de Ninguém". Em outras palavras, aqueles que decidiram ficar na cidade após o decreto foram entregues à própria sorte e perderam o direito à cidadania americana. As pontes que ligavam a cidade ao continente foram derrubadas, os túneis bloqueados, e uma força militar permanente foi posicionada em suas fronteiras para impedir qualquer um de entrar ou sair da cidade. Do lado de dentro de Gotham uma nova ordem social foi instaurada, na qual antigos valores e instituições não existiam mais. Num mundo em que "fósforos valem mais do que uma câmera", e a úncia lei que existe é a do mais forte, os gothamitas se dividiram em tribos, umas formadas por membros de gangues de rua, outras encabeçadas pelos mais proeminentes vilões da cidade, como o Pinguim e o Duas Caras, e outras ainda pelos antigos agentes da ordem: o ex-comissário de polícia James Gordon e seus "rapazes de azul", e o time do Morcego. 


Gotham City Dividida

A ideia por trás de Terra de Ninguém foi concebida pelo editor Jordan B. Gorfinkel, e levada à cabo por um seleto time de roteiristas, dentre os quais se destacaram Bob Gale, Scott Beatty, Devin K. Grayson e Greg Rucka. Foram cerca de 80 edições e mais de 2.000 páginas de histórias em quadrinhos publicadas durante todo o ano de 1999, compreendendo todo o período desde que Gotham foi decretada Terra de Ninguém até a reabertura de suas fronteiras. 

A história principal se desenrolou nas páginas dos quatro principais títulos do Morcego na época - Batman, Detective Comics, Shadow of the Bat e Legends of the Dark Knight -, e foi dividia em diversos arcos de histórias individuais e interligadas. Uma Nova Ordem Sem Lei, escrita por Bob Gale e  fantasticamente desenhada por Alex Maleev (Demolidor, fase do Bendis) nos apresenta a nova Gotham City, com todas as suas nuances políticas e divisões territoriais, através do relato de Barbara Gordon, a Oráculo. É nesta história que somos apresentados à nova Batgirl, posto que estava vago desde que Barbara fora aleijada pelo Coringa. Uma frase chama muito a atenção quando a heroína detém dois trombadinhas, e um deles a desdenha pelo fato dela ser mulher: 


"Se você fosse um valentão e apamnhasse de uma mulher, ia admitir? Ou ia dizer que foi um cara enorme com dois metros de altura, forte e com garras? Avisem seus amigos... enqunto tiver gente em Gotham, vai ter um MORCEGO."


A nova Batgirl

Uma das melhores coisas que aconteceram em Terra de Ninguém foi o protagonismo dado a James Gordon. O ex-Comissário de polícia tenta manter Gotham, ou pelo menos uma parte dela, civilizada, enquanto tudo ao seu redor desmorona em caos e barbárie. Para isso ele precisa tomar decisões difíceis - algumas até moralmente duvidosas -, como se aliar a um perigoso vilão para impedir que seu território seja engolido por inimigos. É o que vemos em Ligações Perigosas e A Marca de Cain, de Greg Rucka e Kelley Puckett, respectivamente. As cosias ficam ainda piores em Fruto da Terra, também de autoria de Rucka, quando Billy Pettit, um oficial intransigente e linha-dura, provoca um racha entre os "rapazes de Azul", deixando o território de Gordon ainda mais fragilizado.

Apesar de todos estes percalços, a tarefa mais difícil de Gordon, entretanto, é equilibrar sua posição como líder com sua relação amorosa com a policial Sarah Essen, a qual reprova sua teimosia em não aceitar a ajuda do Batman. Acontece que, após o terremoto, Batman havia deixado a cidade para tentar impedir que ela virasse uma Terra de Ninguém, utilizando-se da influência política de Bruce Wayne, e Gordon não perdoou o herói por acreditar que ele também havia abandonado a cidade em seu pior momento.

E falando no Cruzado de Capa, é muito divertido vê-lo tendo que se adaptar à nova geografia da cidade, bem como a suas novas manias sociais, como a identificação de territórios por meio de pichações. No início, ele tenta absorver para si a tarefa de tentar salvar a cidade do domínio dos vilões, como nos seus primeiros dias de combate ao crime, porém em determinado ponto e acaba percebendo que precisa de ajuda, e reúne mais uma vez a batfamília, que havia sido dispersada após o terremoto, delegando missões específicas a cauda um dos integrantes. Infelizmente, os arcos de histórias vividos pelos agentes do Morcego que servem de tie-ins para a trama principal são o grande ponto fraco desta saga, devido à baixa qualidade dos seus roteiros e desenhos. Acompanhar o Robin enfrentando o Caça-Ratos, Azrael lidando com um homicida dançarino de flamenco e o Asa Noturna tomando o controle de Blackgate das mãos do KGBesta torna-se totalmente desnecessário. Somente o arco da Mulher-Gato salva, e não por causa de sua qualidade, mas por estar diretamente ligado aos eventos finais de Terra de Ninguém. 


Legends of the Dark Knight #119 - Ligações Perigosas 1

Foi durante Terra de ninguém que a Arlequina, famosa parceira de crimes do Coringa, fez a sua estreia no universo regular da DC Comics. Criada pela talentosa dupla Paul Dinni e Bruce Timm exclusivamente para a série animada do Batman em 1992, a personagem caiu rapidamente na graça dos fãs, e no ano seguinte já apareceu nas páginas da revista The Batman Adventures, a qual não integrva a cronologia oficial do Morcego. Assim, em outubro de 1999, foi lançado o especial Batman: Arlequina, aquela com a famosa capa desenhada por Alex Ross que exibia o Coringa vestindo um smoking e dançando com a Arlequina. Esta história, além de narrar a origem da vilã, também explica a ligação dela com a Hera Venenosa, que mais tarde viria a ser explorada na HQ Sereias de Gotham

Uma das coisas que fica claro nesta primeira aparição da Arlequina, e nas que viriam a seguir, é a natureza abusiva do seu relacionamento com o Palhaço do Crime, o qual, a despeito de toda a devoção da moça, a trata com extrema violência, tanto verbal como física. Foi principalmente esta relação que David Ayer falhou em mostrar em seu Esquadrão Suicida, preferindo mostrar os dois vilões como um casalzinho apaixonado.



Capa do Especial Batman - Arlequina


Conforme a saga vai rumando para sua épica (e trágica) conclusão, no arco Fim de Jogo, o ritmo das histórias começa a ficar mais frenético. Batman e Gordon, obviamente, voltam a se tornar aliados, proporcionando a incrível cena em que o herói tenta mais uma vez revelar a sua identidade secreta para o policial, que se recusa a encará-lo sem o capuz. Aqui fica revelado o que todos nós já suspeitamos há tempos: que ele já sabe quem o Batman é por trás da máscara desde a saga Ano Um, porém esta informação nunca foi importante para ele.

É perto do final que Lex Luthor aparece como o grande "salvador" de Gotham, ao apoiar a revogação da lei que transformou a cidade em uma Terra de Ninguém. Suas reais intenções, porém, se revelam nem um pouco altruístas: seu objetivo era se tornar dono de grande parte das propriedades de Gotham, por meio de aquisições fraudulentas. É claro que seu plano acaba sendo exposto pelo Batman, porém a popularidade que ele angariou como bem-feitor da cidade acabou levando-o posteriormente a se eleger presidente dos Estados Unidos da América. 

Mas quem verdadeiramente brilha no final de Terra de Ninguém é o Coringa. Quando tudo parecia estar se encaminhando para uma solução satisfatória o vilão executa sua cartada final, sequestrando todos os bebês nascidos na cidade durante o último ano. Apesar de ter seu plano desbaratado, ele inflige outra tragédia na vida de James Gordon, atingindo outra pessoa de sua família. O confronto final entre Gordon e o Coringa traz a melhor cena deste arco, sem sombra de dúvida. O ex-comissário tem a chance de acabar de uma vez por todas com o vilão, mas opta por não fazê-lo, e ao invés disso dispara contra o joelho do Coringa, que, mesmo em meio à dor, faz piada com a ironia da situação: a de que ele provavelmente não andaria mais, assim como a filha de Gordon (numa referência aos eventos de A Piada Mortal).


Batman Revela sua Identidade Secreta

Seja por seu tamanho exagerado, que intimida a maioria dos leitores, ou por ser fruto da esquecível década de 90, Terra de Ninguém é uma fase que poucos fãs de do Batman conhecem, e por isso mesmo muitos deles desconhecem seu enorme legado. O jogo Batman - Arkham City, o filme Batman - O Cavaleiro das Trevas Ressurge, de Christopher Nolan, e a saga Ano Zero, escrita por Scott Snyder durante a ase dos Novos 52, se inspiraram claramente em diversos elementos de Terra de Ninguém. Ainda assim, foi um período de grandes acontecimentos para a cronologia do Batman, e uma das passagens mais divertidas da trajetória do herói dos quadrinhos.

Batman: Terra de Ninguém ficou muito tempo longe das prateleiras, até recentemente, quando foi republicada no Brasil pela editora Eaglemoss, em uma coleção especial em seis volumes de capa dura, incluindo a saga Cataclismo. Esta edição traz todo o run principal da saga, porém deixa de fora o especial da Arlequina, que foi publicado separadamente pela Panini Comics. Boa leitura!


Batman - Terra de Ninguém (Eaglemoss)

sexta-feira, 10 de novembro de 2017

RESENHA | Justiça


Muitos de nós, fãs incondicionais de quadrinhos de super heróis, crescemos assistindo àquele famoso desenho animado dos Superamigos, da Hanna-Barbera, que trazia os mais importantes personagens da DC Comics em sua versão animada (se você foi um dos que assistiram este desenho, saiba, meu amigo, que está ficando velho!). Muitos de nós, aliás, tivemos nosso primeiro contato com personagens como Batman, Superman e Mulher Maravilha através desta animação. Havia uma temporada deste desenho - intitulada O Desafio dos Superamigos -, em que os super heróis enfrentavam uma sinistra equipe formada por alguns dos maiores super vilões da DC Comics da época: a Legião do Mal. Foi desta série que veio a inspiração para a criação de Justiça, uma maxi-série em 12 edições concebida pela lenda viva da nona arte Alex Ross (Marvels, Reino do Amanhã, Terra X), com roteiros de Jim Krueger (Terra X) e lápis de Doug Braithwaite.

Legião do Mal - Alex Ross (acima) / Superamigos (abaixo)

Se existe um motivo básico para ler esta história, sem sombra de dúvida é a fabulosa arte de Alex Ross. Cada quadro do artista é, literalmente, uma pintura, que impressiona por sua aparência realística, apesar da caracterização clássica dos personagens (não é mistério para ninguém que Alex Ross é um entusiasta do estilo clássico da Era de Prata dos quadrinhos). Somente ele para desenhar um Superman ultrarrealista vestindo seu famoso uniforme azul, amarelo e vermelho, e com a cueca por cima da calça! E o que dizer das splash pages mostrando, nos mínimos detalhes, épicas cenas de batalha entre diversos heróis e vilões da DC: um verdadeiro prato cheio para os fãs de histórias de super heróis em sua forma mais clássica! No entanto, seria injusto atribuir todo o crédito da arte apenas a Alex Ross, já que nesta nesta Graphic Novel em particular ele colaborou com o desenhista britânico Doug Braithwaite, o qual forneceu os esboços a lápis sobre os quais Ross pintou. Felizmente, o estilo do traço de Braithwaite é bastante parecido com o de Alex Ross, de modo que o resultado foi um verdadeiro amálgama da arte de ambos.

Superman, por Alex Ross

Mas não é só por causa da belíssima arte que vale a pena ler Justiça: o roteiro de Jim Krueger também tem seus méritos. A premissa básica de Justiça é bastante interessante: e se os maiores super vilões do planeta decidissem empregar seus dons, normalmente utilizados em crimes mesquinhos ou em planos de dominação mundial, para resolver os problemas da humanidade? É justamente isto que acontece no primeiro ato de Justiça: motivados por um pesadelo compartilhado, no qual a Liga da Justiça falha em salvar o mundo de um Armagedom nuclear, os vilões decidem se unir e fazer aquilo que os maiores heróis do planeta não se dispuseram a fazer até então: curar doenças, resolver o problema da fome, transformar desertos em florestas, enfim, melhorar a vida dos humanos comuns. A grande questão é: será que todos estes atos são genuinamente altruístas, ou há algum plano maligno por trás de tudo? Pois, ao mesmo tempo em que anunciam seu plano de salvação para o planeta, os vilões lançam um ataque orquestrado e avassalador contra a Liga da Justiça, inutilizando seus membros mais poderosos.

Ataque à Mulher Maravilha

Um ponto negativo do enredo de Justiça é justamente o fato de o conceito principal da trama não ser desenvolvido ao longo da história, que embarca em uma linha mais voltada para o embate clássico entre heróis e vilões. Além disso, falta coragem quando nenhum dos heróis derrubados sofre qualquer dano permanente, mesmo o Aquaman, que tem um pedaço do cérebro cirurgicamente removido por Brainiac. Mesmo a questão das identidades civis dos membros da Liga da Justiça, descobertas durante o ataque da Legião do Mal, é resolvida de maneira simples e rápida, para que, ao final, o status quo dos heróis continue o mesmo de antes. Ao final de Justiça, absolutamente nada muda para os heróis, a não ser o conhecimento de que eles não são, afinal, invencíveis. Mas esta é, por si só, a essência da Era de Prata: de que, apesar de tudo parecer que irá dar errado no começo, os verdadeiros heróis encontrarão as forças para dar a volta por cima e fazer com que tudo volte ao normal.

A conclusão da história é nada menos do que épica, e faz jus ao título que Alex Ross originalmente usaria: Vs (Versus). É herói contra vilão, ou melhor, em alguns casos, chega a ser herói contra herói, já que os vilões voltam os pupilos dos membros da Liga da Justiça contra seus antigos mentores. Numa batalha que toma grande parte das três últimas edições, vários heróis da DC Comics tomam parte do conflito: além da Liga e dos Jovens Titãs, temos a Patrulha do Destino, os Homens Metálicos e a Família Marvel (não, não estou falando dos Vingadores!). Sendo esta uma história com o dedo de Alex Ross, um personagem que ganha bastante destaque é o Capitão Marvel, que tem diversas cenas excelentes ao lado do Superman.

O Capitão Marvel

Apesar do grande número de personagens, o roteirista soube onde colocar cada um deles e empregar seus poderes com bastante eficiência, até mesmo personagens secundários como o Homem Elástico ou os Homens Metálicos. E por falar nos coloridos robôs do Dr. Magnus, não se pode concluir uma resenha de Justiça sem falar nas controversas armaduras usadas pelos heróis da Liga da Justiça no confronto final com a Legião do Mal. Alex Ross nunca escondeu que o preço para publicar Justiça foi criar uma linha de personagens que a DC pudesse utilizar para vender bonecos. Esta não foi a primeira vez que uma editora fez isso, tampouco a última; contudo, Krueger insere a necessidade das armaduras de forma bem natural e coerente em seu roteiro, de modo que o novo visual não causa nenhum problema à história em si, a não ser por ter tirado o glamour das cenas finais, que teriam sido muito melhores com os heróis em seus trajes clássicos.

A Liga da Justiça com suas Armaduras

Não ouso dizer que Justiça seja um clássico, um divisor de águas para o gênero, uma obra-prima dos quadrinhos; porém ela é uma excelente pedida para quem gosta de uma boa história de super heróis, repleta de ação, planos mirabolantes, reviravoltas e dezenas dos personagens mais clássicos da Editora das Lendas lutando entre si, tudo isso retratado com uma arte soberba. Justiça é uma homenagem a uma era dos quadrinhos em que as coisas eram mais simples e ingenuamente otimistas, quando os enredos ainda não haviam sido contaminados pelo cinismo da década de 80. Enfim, Justiça é uma carta de amor escrita e desenhada por um grande fã para outros fãs.

E se o amigo leitor estiver se perguntando como fazer para ler esta HQ, existem algumas opções: a primeira é ler as edições individuais que foram publicadas pela Panini na época do lançamento, e que com sorte podem ser encontradas no Mercado Livre; a segunda, e mais indicada, é adquirir a Edição Definitiva lançada por esta mesma editora no Brasil, uma versão de luxo lindíssima publicada em tamanho grande, maior que o formato americano (mais comumente utilizado pela Panini). O problema desta edição é que, assim como todas as edições definitivas publicadas pela Panini, ela se esgota muito rápido nos sites de venda, então não é nada fácil encontrá-la à venda. Mas não perca a esperança: por último há a versão da Eaglemoss, que saiu na coleção de Graphic Novels da DC da editora inglesa nos números #27 e #28, e que podem ser encontrados facilmente no site da editora. Boa leitura!

Capa da Edição Definitiva de Justiça