domingo, 22 de abril de 2018

Batman: Cataclismo e Terra de Ningém



Não é fácil morar em Gotham City. Assolada por todo tipo de criminosos, desde gangues de traficantes a assassinos fantasiados mentalmente insanos, o lar do soturno vigilante conhecido como Batman já foi o marco zero de uma epidemia de ebola que quase dizimou a sua população. Como se isto não bastasse para obrigar até o mais corajoso cidadão a fazer as malas e se mandar para Metrópolis ou Central City, Gotham também foi o epicentro de um terremoto de 7.6 pontos na escala Richter que transformou a cidade em uma grande pilha de escombros e a mandou de volta à Idade das Pedras. 

Numa época em que o cinema catástrofe estava na moda (filmes como Volcano, Twister e Armageddom são apenas alguns exemplos), um time de roteiristas composto por Alan Grant, Doug Moench e Chuck Dixon resolveu trazer o tema para as páginas dos quadrinhos. Só havia um pequeno probleminha de ordem geológica com esta ideia: para quem não sabe, Gotham City supostamente estaria localizada na costa leste dos Estados Unidos, perto de Nova York e Washington, uma região do país em que terremotos não são nem um pouco comuns - eles costumam acontecer lá pelas bandas da costa oeste, tipo na Califórnia. Tal fato, porém, não impediu os distintos roteiristas de apostar na ideia de um grande terremoto atingindo a cidade do Cavaleiro das Trevas.

Cataclismo, como ficou conhecida esta saga, foi um grande crossover que se desenrolou nas páginas das revistas Batman, Detective Comics, Shadow of the Bat (A Sombra do Morcego), Asa Noturna, Azrael, Mulher Gato e Robin, nos meses de março e abril de 1998. Na primeira parte deste arco acompanhamos o mesmo evento - o terremoto - sob a ótica do Batman e seus afiliados. Enquanto o Homem Morcego precisa escapar da destruição da mansão Wayne e da Batcaverna, os outros membros da batfamília precisam fazer das tripas o coração para resgatar o maior número possível de civis dos desmoronamentos. A segunda parte é focada na busca por um "novo" vilão que alega ter sido o responsável pelo terremoto e ser capaz de provocar um segundo, caso suas exigências não sejam atendidas. Em um universo em que coexistem seres capazes de destruir toda uma cidade (ou até mesmo o planeta), ninguém duvida de tais alegações, e aqui vemos o Batman assumir o perfil de detetive para descobrir a identidade deste vilão. O final desta história só prova o quanto os criminosos de Gotham City são os mais criativos e ousados de todo o Universo DC. 



Capa da versão americana de Cataclismo

A arte de Cataclismo é bastante afetada pelo formato da série, em que artistas diferentes contribuem com os desenhos em cada edição. Isto gera uma falta de uniformidade que acaba afetando a qualidade da obra como um todo. A grande importância de Cataclismo, porém, foi ela ter sido o ponto de partida para a grandiosa maxissérie que conduziu o universo do Morcego dos tenebrosos anos 90 para os ares mais frescos do século 21: Terra de Ninguém

Nesta história, o governo dos EUA, influenciado pela opinião de que Gotham não valia o esforço de reconstrução devido ao seu extenso histórico de criminalidade e corrupção, decide abandonar a cidade e decretá-la "Terra de Ninguém". Em outras palavras, aqueles que decidiram ficar na cidade após o decreto foram entregues à própria sorte e perderam o direito à cidadania americana. As pontes que ligavam a cidade ao continente foram derrubadas, os túneis bloqueados, e uma força militar permanente foi posicionada em suas fronteiras para impedir qualquer um de entrar ou sair da cidade. Do lado de dentro de Gotham uma nova ordem social foi instaurada, na qual antigos valores e instituições não existiam mais. Num mundo em que "fósforos valem mais do que uma câmera", e a úncia lei que existe é a do mais forte, os gothamitas se dividiram em tribos, umas formadas por membros de gangues de rua, outras encabeçadas pelos mais proeminentes vilões da cidade, como o Pinguim e o Duas Caras, e outras ainda pelos antigos agentes da ordem: o ex-comissário de polícia James Gordon e seus "rapazes de azul", e o time do Morcego. 


Gotham City Dividida

A ideia por trás de Terra de Ninguém foi concebida pelo editor Jordan B. Gorfinkel, e levada à cabo por um seleto time de roteiristas, dentre os quais se destacaram Bob Gale, Scott Beatty, Devin K. Grayson e Greg Rucka. Foram cerca de 80 edições e mais de 2.000 páginas de histórias em quadrinhos publicadas durante todo o ano de 1999, compreendendo todo o período desde que Gotham foi decretada Terra de Ninguém até a reabertura de suas fronteiras. 

A história principal se desenrolou nas páginas dos quatro principais títulos do Morcego na época - Batman, Detective Comics, Shadow of the Bat e Legends of the Dark Knight -, e foi dividia em diversos arcos de histórias individuais e interligadas. Uma Nova Ordem Sem Lei, escrita por Bob Gale e  fantasticamente desenhada por Alex Maleev (Demolidor, fase do Bendis) nos apresenta a nova Gotham City, com todas as suas nuances políticas e divisões territoriais, através do relato de Barbara Gordon, a Oráculo. É nesta história que somos apresentados à nova Batgirl, posto que estava vago desde que Barbara fora aleijada pelo Coringa. Uma frase chama muito a atenção quando a heroína detém dois trombadinhas, e um deles a desdenha pelo fato dela ser mulher: 


"Se você fosse um valentão e apamnhasse de uma mulher, ia admitir? Ou ia dizer que foi um cara enorme com dois metros de altura, forte e com garras? Avisem seus amigos... enqunto tiver gente em Gotham, vai ter um MORCEGO."


A nova Batgirl

Uma das melhores coisas que aconteceram em Terra de Ninguém foi o protagonismo dado a James Gordon. O ex-Comissário de polícia tenta manter Gotham, ou pelo menos uma parte dela, civilizada, enquanto tudo ao seu redor desmorona em caos e barbárie. Para isso ele precisa tomar decisões difíceis - algumas até moralmente duvidosas -, como se aliar a um perigoso vilão para impedir que seu território seja engolido por inimigos. É o que vemos em Ligações Perigosas e A Marca de Cain, de Greg Rucka e Kelley Puckett, respectivamente. As cosias ficam ainda piores em Fruto da Terra, também de autoria de Rucka, quando Billy Pettit, um oficial intransigente e linha-dura, provoca um racha entre os "rapazes de Azul", deixando o território de Gordon ainda mais fragilizado.

Apesar de todos estes percalços, a tarefa mais difícil de Gordon, entretanto, é equilibrar sua posição como líder com sua relação amorosa com a policial Sarah Essen, a qual reprova sua teimosia em não aceitar a ajuda do Batman. Acontece que, após o terremoto, Batman havia deixado a cidade para tentar impedir que ela virasse uma Terra de Ninguém, utilizando-se da influência política de Bruce Wayne, e Gordon não perdoou o herói por acreditar que ele também havia abandonado a cidade em seu pior momento.

E falando no Cruzado de Capa, é muito divertido vê-lo tendo que se adaptar à nova geografia da cidade, bem como a suas novas manias sociais, como a identificação de territórios por meio de pichações. No início, ele tenta absorver para si a tarefa de tentar salvar a cidade do domínio dos vilões, como nos seus primeiros dias de combate ao crime, porém em determinado ponto e acaba percebendo que precisa de ajuda, e reúne mais uma vez a batfamília, que havia sido dispersada após o terremoto, delegando missões específicas a cauda um dos integrantes. Infelizmente, os arcos de histórias vividos pelos agentes do Morcego que servem de tie-ins para a trama principal são o grande ponto fraco desta saga, devido à baixa qualidade dos seus roteiros e desenhos. Acompanhar o Robin enfrentando o Caça-Ratos, Azrael lidando com um homicida dançarino de flamenco e o Asa Noturna tomando o controle de Blackgate das mãos do KGBesta torna-se totalmente desnecessário. Somente o arco da Mulher-Gato salva, e não por causa de sua qualidade, mas por estar diretamente ligado aos eventos finais de Terra de Ninguém. 


Legends of the Dark Knight #119 - Ligações Perigosas 1

Foi durante Terra de ninguém que a Arlequina, famosa parceira de crimes do Coringa, fez a sua estreia no universo regular da DC Comics. Criada pela talentosa dupla Paul Dinni e Bruce Timm exclusivamente para a série animada do Batman em 1992, a personagem caiu rapidamente na graça dos fãs, e no ano seguinte já apareceu nas páginas da revista The Batman Adventures, a qual não integrva a cronologia oficial do Morcego. Assim, em outubro de 1999, foi lançado o especial Batman: Arlequina, aquela com a famosa capa desenhada por Alex Ross que exibia o Coringa vestindo um smoking e dançando com a Arlequina. Esta história, além de narrar a origem da vilã, também explica a ligação dela com a Hera Venenosa, que mais tarde viria a ser explorada na HQ Sereias de Gotham

Uma das coisas que fica claro nesta primeira aparição da Arlequina, e nas que viriam a seguir, é a natureza abusiva do seu relacionamento com o Palhaço do Crime, o qual, a despeito de toda a devoção da moça, a trata com extrema violência, tanto verbal como física. Foi principalmente esta relação que David Ayer falhou em mostrar em seu Esquadrão Suicida, preferindo mostrar os dois vilões como um casalzinho apaixonado.



Capa do Especial Batman - Arlequina


Conforme a saga vai rumando para sua épica (e trágica) conclusão, no arco Fim de Jogo, o ritmo das histórias começa a ficar mais frenético. Batman e Gordon, obviamente, voltam a se tornar aliados, proporcionando a incrível cena em que o herói tenta mais uma vez revelar a sua identidade secreta para o policial, que se recusa a encará-lo sem o capuz. Aqui fica revelado o que todos nós já suspeitamos há tempos: que ele já sabe quem o Batman é por trás da máscara desde a saga Ano Um, porém esta informação nunca foi importante para ele.

É perto do final que Lex Luthor aparece como o grande "salvador" de Gotham, ao apoiar a revogação da lei que transformou a cidade em uma Terra de Ninguém. Suas reais intenções, porém, se revelam nem um pouco altruístas: seu objetivo era se tornar dono de grande parte das propriedades de Gotham, por meio de aquisições fraudulentas. É claro que seu plano acaba sendo exposto pelo Batman, porém a popularidade que ele angariou como bem-feitor da cidade acabou levando-o posteriormente a se eleger presidente dos Estados Unidos da América. 

Mas quem verdadeiramente brilha no final de Terra de Ninguém é o Coringa. Quando tudo parecia estar se encaminhando para uma solução satisfatória o vilão executa sua cartada final, sequestrando todos os bebês nascidos na cidade durante o último ano. Apesar de ter seu plano desbaratado, ele inflige outra tragédia na vida de James Gordon, atingindo outra pessoa de sua família. O confronto final entre Gordon e o Coringa traz a melhor cena deste arco, sem sombra de dúvida. O ex-comissário tem a chance de acabar de uma vez por todas com o vilão, mas opta por não fazê-lo, e ao invés disso dispara contra o joelho do Coringa, que, mesmo em meio à dor, faz piada com a ironia da situação: a de que ele provavelmente não andaria mais, assim como a filha de Gordon (numa referência aos eventos de A Piada Mortal).


Batman Revela sua Identidade Secreta

Seja por seu tamanho exagerado, que intimida a maioria dos leitores, ou por ser fruto da esquecível década de 90, Terra de Ninguém é uma fase que poucos fãs de do Batman conhecem, e por isso mesmo muitos deles desconhecem seu enorme legado. O jogo Batman - Arkham City, o filme Batman - O Cavaleiro das Trevas Ressurge, de Christopher Nolan, e a saga Ano Zero, escrita por Scott Snyder durante a ase dos Novos 52, se inspiraram claramente em diversos elementos de Terra de Ninguém. Ainda assim, foi um período de grandes acontecimentos para a cronologia do Batman, e uma das passagens mais divertidas da trajetória do herói dos quadrinhos.

Batman: Terra de Ninguém ficou muito tempo longe das prateleiras, até recentemente, quando foi republicada no Brasil pela editora Eaglemoss, em uma coleção especial em seis volumes de capa dura, incluindo a saga Cataclismo. Esta edição traz todo o run principal da saga, porém deixa de fora o especial da Arlequina, que foi publicado separadamente pela Panini Comics. Boa leitura!


Batman - Terra de Ninguém (Eaglemoss)