Como seria o nosso mundo se os super heróis existissem de verdade? O que a presença de um ser dotado de poderes verdadeiramente autênticos e ilimitados representaria para o equilíbrio de poder entre as nações? Como o vigilantismo seria encarado pela população das grandes cidades? Que tipo de pessoa se arriscaria a sair todas as noites para lutar contra criminosos vestindo uma fantasia? Na aclamada Graphic Novel Watchmen, publicada entre setembro de 1986 e agosto de 1987 pela DC Comics, Alan Moore e Dave Gibbons se propõem a responder a essas e outras perguntas, num enredo cínico e pessimista que parodia o gênero dos super heróis e desconstrói diversos conceitos sobre o quais ele se estabeleceu desde os anos 1940.
Inicialmente Alan Moore pretendia utilizar os heróis da Charlton Comics, cujos personagens haviam sido incorporados pela DC Comics após sua falência, porém a editora tinha outros planos para o Capitão Átomo, o Besouro Azul e o Questão, de modo que Alan Moore e Dave Gibbons tiveram que conceber personagens totalmente novos para povoar o universo de Watchmen. Tanto melhor. O mundo em que esta história se passa também era completamente independente da continuidade regular da editora, o que deu bastante liberdade para Alan Moore contar sua história sem se preocupar com possíveis repercussões na continuidade do Universo DC. Apesar de muito parecido com o nosso, o mundo de Watchmen possuía algumas diferenças cruciais, provocadas pela presença dos heróis fantasiados. Por exemplo, graças ao Dr. Manhattan os EUA venceram a Guerra do Vietnã e Richard Nixon permaneceu como presidente até os anos 1980.
Moore estabeleceu uma mitologia própria para os super heróis que povoavam aquele universo, estabelecendo que existiram duas gerações distintas de heróis: a primeira, nascida nos anos 1940, marcou a alvorada dos "aventureiros mascarados", os quais mais tarde de juntaram e formaram os "Homens-Minuto"; já a segunda geração surgiu durante a década de 60, em meio a todas as grandes mudanças sociais pelas quais os EUA estavam passando, e acabou sendo forçada a se aposentar após a sanção de uma lei que tornava ilegais os vigilantes. No entanto, alguns desses heróis continuaram na ativa, como o Comediante e o Dr. Manhattan, que trabalhavam para o governo, e o psicótico Rorschach, que mesmo procurado pela polícia continuou em sua cruzada contra o crime.
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Os Minute-Man (acima) e os Combatentes do Crime (abaixo) |
A trama principal de Watchmen começa com o assassinato do herói conhecido como Comediante, embora "herói" não seja o termo mais adequado para definir uma figura tão polêmica como Edward "Eddie" Blake. Conhecido por um cinismo constante com relação à sociedade e uma postura quase sempre violenta, ele não possui muitos amigos, e apenas o vigilante Rorschach se interessa em conduzir uma investigação sobre sua morte. Esta investigação o arrasta para dentro de uma conspiração política que planeja destruir o mundo em um holocausto nuclear provocado pela guerra entre os EUA e a URSS, mas para que este plano tenha sucesso, a ameaça dos heróis remanescentes precisa ser removida, principalmente o todo-poderoso Dr. Manhattan, que é manipulado psicologicamente para deixar a Terra e abrir caminho para a escalada armamentista russa. Além de Rorschach, outros dois heróis aposentados são forçados a voltar à ativa: Coruja e Espectral. Ambos haviam pendurado os uniformes por vontade própria, o primeiro por considerar que seu período como vigilante não passou de uma fantasia ridícula de adolescente que se prolongou até a vida adulta, e a segunda como uma forma de se recusar a seguir o caminho imposto pela mãe, a primeira Espectral.
Apesar do excelente roteiro, o que mais chama a atenção em Watchmen é sua narrativa gráfica. A HQ é um verdadeiro laboratório onde Alan Moore e Dave Gibbons experimentaram diversas técnicas narrativas de vanguarda, como metalinguagem, fractais, simbolismos e conceitos filosóficos. Texto e desenhos de conversam entre si e se complementam em uma narrativa coesa e inteligente. A arte de Dave Gibbons é repleta de detalhes, cada um deles dotado de um significado importante para a trama. Sejam as inúmeras referências ao perfume "Nostalgia" ou à empresa de fechaduras "Gordian Knot", a história é repleta de simbolismos que remetem a ideias centrais para o enredo. Watchmen ainda conta com uma trama paralela, uma espécie de história dentro da história, chamada Contos do Cargueiro Negro, a qual, de início, parece deslocada em sem sentido para a trama principal, mas quando se analisa a conclusão de ambas, percebe-se que na verdade as duas contam a mesma história.
A estrutura gráfica de Watchmen também e outro aspecto interessante da Graphic Novel. Gibbons utilizou um padrão de nove quadros por página que se repete em todas as edições, com pequenas variações para permitir quadros maiores. Na edição #5, intitulada Terrível Simetria, em apologia a Rorschach, vemos a aplicação deste padrão levada ao extremo. Se o leitor prestar bastante atenção perceberá que a disposição dos quadros da primeira metade desta edição é "refletida" na segunda metade, formando um impressionante padrão simétrico. O exato centro deste padrão ocorre entre as páginas 14 e 15, e a partir daí, a página 16 reflete a página 13, a 17 a 12 e daí por diante. Imagine a dificuldade para se executar tamanha tarefa, e ainda por cima com todas as limitações de prazo impostas pela editora!
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A "Terrível Simetria" |
A conclusão de Watchmen é arrebatadora, e, apesar disso, agridoce. O mundo é salvo, porém ao custo da consciência dos heróis, que precisam esconder a terrível verdade por trás da conspiração do "matador de mascarados" para que a paz seja mantida. Não é um final fácil de ser digerido, porém é o único possível, um verdadeiro cheque-mate de roteiro.
Nem preciso dizer que Wachmen é uma HQ obrigatória para os verdadeiros fãs de quadrinhos. Ela é uma obra para se ler e reler diversas vezes, e a cada leitura pode-se descobrir um novo detalhe ou se maravilhar com a imponência de uma história que, apesar de ter sido produzida há mais de 30 anos, continua atual. Ela marcou a alvorada das HQ's voltadas para o público adulto, redefinindo o gênero das histórias em quadrinhos de super heróis ao abordar temas como política, sexualidade e violência, raramente vistos juntos em uma história de banda desenhada americana até então.
Watchmen já foi adaptada para o cinema em 2009 no longa dirigido por Zack Snyder, e recentemente foi noticiado que ela será adaptada em uma série de TV produzida pela HBO. A própria DC Comics decidiu dar continuidade à história concebida por Alan Moore, incorporando-a ao seu universo regular com a vindoura saga Doomsday Clock. Mas nada disso se compara a ler o material original - aqui no Brasil esta história já foi publicada e republicada diversas vezes, e se eu pudesse indicar uma edição que eu considero perfeita, seria a Edição Definitiva da Panini Comics, a qual conta ainda com dezenas de páginas extras, incluindo as concepções iniciais de Alan Moore para os personagens da Charlton. Boa leitura!
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