Criado em 1964 pela dupla Stan Lee e Bill Everett, durante o turbilhão criativo em que surgiram personagens como o Quarteto Fantástico, o Homem Aranha, os X-Men e os Vingadores, o Demolidor é um dos heróis mais clássicos da Casa das Ideias. No entanto, ao final da década de 70 a revista do Demolidor encontrava-se à beira do cancelamento, devido a uma sucessão de histórias ruins. Foi por volta desta época que o artista Frank Miller, após desenhar o Demolidor em duas histórias com o Homem-Aranha, foi convidado pelo editor Jim Shooter para fazer a arte da revista solo do Demolidor, em parceria com o roteirista Roger Mackenzie. Dois anos depois Miller também assumiu o roteiro do título, acumulando as duas funções, e Klaus Janson, que se tornaria seu principal colaborador ao longo dos anos, ficou com a arte-final.
Com o completo controle criativo da revista, Frank Miller mudou completamente o formato das histórias do Demolidor, substituindo as aventuras curtas nas quais o herói enfrentava o "vilão da vez" por pequenos arcos de histórias que duravam algumas edições, cujos eventos estavam interligados e faziam parte de uma trama maior. O tom das histórias, antes mais leve e ingênuo, se tornou cada vez mais sombrio e realista, característica que viria a marcar os trabalhos de Miller. Este primeiro run do famoso quadrinista com o Demolidor até hoje é considerado um dos melhores momentos do herói nos quadrinhos, quando foram lançadas as bases que estabeleceram toda a mitologia do herói cego de Hell's Kitchen: seu relacionamento com a anti-heroína Elektra Nachios, a rivalidade mortal entre o Demolidor e o Mercenário, e o estabelecimento do Rei do Crime - antigo vilão reaproveitado do Homem-Aranha -, como a maior nêmese do Homem Sem Medo.
Apesar da qualidade destas histórias e de sua importância, até hoje este material não havia recebido o tratamento que os fãs mereciam, até que a editora Panini Comics, embalada pelo sucesso da série do Demolidor da Netflix, resolveu publicar esta fase consagrada na íntegra e em formato de luxo, em três belos encadernados. Se no primeiro volume (clique aqui para acessar esta resenha) Frank Miller surpreende seus leitores com a forma ousada com a qual ele reconduziu o Rei do Crime ao seu posto, neste segundo encadernado testemunhamos um dos eventos mais importantes da história do Demolidor, e um dos mais icônicos dos quadrinhos de todos os tempos: a morte de Elektra!
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Matt Murdock vs. O Tentáculo |
No primeiro arco deste volume somos apresentados à organização criminosa de ninjas conhecida como Tentáculo. Alguém poderia pensar que ao inserir ninjas em uma história urbana policial seria ir na contramão do processo de aproximação da histórias do Demolidor com o mundo real, porém Miller o faz com maestria, e o resultado é simplesmente as melhores e mais bem desenhadas cenas de ação deste quadrinho. A paixão de Miller pela cultura japonesa nunca foi segredo para ninguém: ele foi um dos principais responsáveis pela disseminação dos mangás no Ocidente, e é possível perceber a influência deste estilo em várias de suas obras.
A ameaça do Tentáculo é a desculpa perfeita para reintroduzir uma personagem que havia conquistado os fãs desde que estreara: a mercenária grega Elektra, a antiga namorada de Matt Murdock dos tempos da faculdade. Aqui é revelado que ela era um membro renegado desta organização, e fora com eles que ela aprendera as técnicas de luta ninja. Apesar de estarem do lado oposto da lei e da moça negar veementemente seus sentimentos por Matt, quando ele se torna alvo do Tentáculo ela retorna a Nova York em seu auxílio. Esta volatilidade moral, principal característica dos anti-heróis, foi um dos fatores que fez com que os leitores simpatizassem rapidamente com ela, além, é claro, de seu visual incrível.
Outro personagem importante introduzido nesta história é o velho cego Stick. Stick fora o mentor de Matt Murdock quando ele ficou cego, e foi quem lhe ensinou a controlar seus sentidos ampliados. Assim como no caso de Elektra, Miller não hesita em fazer uso do retcon, um dos recursos narrativos mais usados nos quadrinhos, que é quando uma mudança importante é feita no passado de um personagem para explicar determinado evento de seu presente. Nesta história Stick tem um papel pequeno, porém importantíssimo: ele ajuda o Demolidor a recuperar seu sentido de radar após o herói tê-lo perdido quando atingido por uma explosão provocada pelos ninjas do Tentáculo.
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O Treinamento com Stick |
No segundo arco o Demolidor tem novamente como adversário o Rei do Crime, que pretende eleger um prefeito para ser sua marionete no comando de Nova York. Wilson Fisk agora tem o controle completo de todas as quadrilhas criminosas da cidade, e é sem dúvida o inimigo mais poderoso do Demolidor. É impressionante o trabalho de desenvolvimento de personagem que Frank Miller fez com o Rei do Crime: anteriormente um personagem subaproveitado, nas mãos de Miller ele se tornou um vilão de primeira categoria. Apesar de sua enorme força física, ele não tem nenhum superpoder, e isso fez dele o personagem ideal para a história que Miller vinha construindo para o Demolidor. Ele é um adversário implacável, sempre agindo das sombras, fazendo sua vontade ser cumprida através medo e intimidação. Um de seus principais artifícios de persuasão é sua assassina particular, Elektra, que substituiu o Mercenário após ele ser preso.
Apesar de a maioria das pessoas concordar que o Rei é intocável, ainda há pessoas corajosas que o enfrentam, como o repórter Ben Urich. Este é outro personagem que cresceu nas mãos de Miller. Seu papel nas histórias do Demolidor é bem parecido com o do Comissário Gordon nas revistas do Batman: o de um homem obcecado pelo dever para com sua cidade a ponto de sacrificar sua própria vida pessoal. Porém, ao contrário de Gordon, ele não possui os meios de se defender, tornando-o um personagem muito vulnerável e dependente de seu amigo, o Demolidor. Uma das edições mais legais deste volume, chamada Adagas, mostra todos os eventos sob a ótica de Ben, quando ele está tentando expor a farsa da candidatura de Winston Cherryh, o que acaba colocando-o na mira das adagas sai de Elektra. É nesta edição que vemos o confronto entre ela e o Demolidor, numa cena de luta de tirar o fôlego.
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Elektra vs. Demolidor |
Embora o Rei do Crime seja o grande arqui-inimigo do Demolidor, o Mercenário ainda é o responsável pelas maiores mazelas que assolaram a vida pessoal de Matt Murdock. Ele está para o Demolidor como o Coringa está para o Batman; Frank Miller transformou um vilão fantasiado de boa pontaria em um assassino completamente psicótico, obcecado em se vingar do herói que o derrotara tantas vezes. Numa fuga espetacular da prisão, o Mercenário volta a Nova York e mata a mulher que o substituíra como a principal assassina do Rei do Crime. Numa cena carregada de emoção, vemos Elektra atravessar a cidade, mortalmente ferida, para morrer nos braços do único homem que amara. Esta tragédia marcaria para sempre a vida do Demolidor, e foi o ato que transformou o Mercenário em seu maior inimigo pessoal.
Não preciso nem mencionar que esta HQ é item obrigatório para qualquer fã do Demolidor. Dos três volumes publicados pela Panini desta fase, este é sem dúvida o melhor deles, por abordar eventos que marcariam para sempre a trajetória do Diabo da Guarda de Hell's Kitchen. Boa leitura!
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Capa do Volume 2 |