Em 2016 a Eaglemoss começou a publicar no Brasil uma coleção de Graphic Novels da DC Comics em capa dura, reunindo as principais histórias de Batman, Superman, Mulher Maravilha, Liga da Justiça, dentre outros. Quando vi a lista de HQs que compunham esta coleção, fiquei animadíssimo, pois vi que ela continha uma Graphic Novel escrita por Dennis O'Neil chamada Batman: Nascimento do Demônio, que narra a origem do vilão Ra's al Ghul. Apesar de não ter assinado a coleção (muitas histórias que fazem parte dela eu já tinha em outras publicações pela Panini), fiquei acompanhando pelo site da editora até o lançamento desta HQ específica. Quando finalmente tinha em mãos os dois volumes que compunham Nascimento do Demônio, eis minha grata surpresa quando vi que não apenas esta história estava contemplada, mas todas as três que compõem a chamada Trilogia do Demônio. Destas, apenas O Filho do Demônio se encontrava até então disponível comercialmente, devido a sua relação com o arco de histórias de Grant Morrison que chacoalhou o Universo do Morcego na última década (e a cabeça dos fãs!); as outras duas, somente em sebos ou nas mãos dos Mercenários Livres da Internet.
Nesta postagem irei resenhar sobre as primeiras duas histórias da trilogia, as quais compõem o primeiro encadernado. Portanto, não saia da frente por bat-computador ou do bat-celular!
I. O Filho do Demônio, por Mike W. Barr (roteiro) e Jerry Bingham (arte)
"Detetive, como sabe, sou amaldiçoado com uma paixão pelo vazio, pela desolação. É uma beleza à qual minha alma corresponde. Tão pura e imaculada quanto os desertos de minha terra natal. Julgo ser minha missão purificar este planeta, restaurar sua beleza... e tolerarei nenhuma interferência. No entanto, por ora, somos aliados..."
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Ra's al Ghul, Talia e Batman |
É provável que esta Graphic Novel lançada em 1987 (por acaso o ano do nascimento daquele que vos escreve) atualmente seria desconhecida da maior parte dos fãs do Cruzado de Capa, excetuando-se os mais aficionados, não fosse pelo fato de um certo roteirista escocês, no ano de 2006, ter resgatado um acontecimento específico desta história e tê-lo utilizado em sua própria trama: o de que o Batman teve um filho! Se você está entrando no mundo dos quadrinhos agora e não sabia disso, então não se espante: o Homem Morcego já é papai há algum tempo, e já fez até o moleque vestir o manto do Robin! No entanto, lá em 1987 o roteirista Mike W. Barr (o mesmo de Camelot 3000) nem fazia ideia de que o bebê que Talia al Ghul entregava para adoção ao final de O Filho do Demônio se tornaria o novo Robin, uma vez que esta história não pertencia ao cânone oficial do Batman. Independente de todos estes fatos, esta HQ se sustenta apenas por sua qualidade, e vale a pena a leitura não apenas por sua importância na fase atual do personagem, mas pela história em si, e mais ainda pela incrível arte de Jerry Bingham.
O trama se inicia com Batman investigando o misterioso assassinato de um cientista em Gotham, o dr. Harris Blaine, personagem oriundo das primeiras aventuras de Batman contra Ra's al Ghul. A investigação e a natreza das pesquisas de Blaine, bem como a presença de uma certa mulher de seu passado, levam Batman a desconfiar do líder da organização criminosa conhecida como Cabeça do Demônio, seu arqui-rival Ra's al Ghul. No entanto, quando o confronta, o Cavaleiro das Trevas descobre que dessa vez Ra's é inocente, e precisa forjar uma improvável aliança com seu inimigo para enfrentar a verdadeira ameaça: o perigoso terrorista Qayin, antigo desafeto de Ras's, que pretende provocar uma guerra de proporções globais entre os EUA e a URSS fazendo uso de uma arma climática.
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Batman |
Mike W. Barr procura construir um enredo mais próximo possível da realidade; não faltam referências históricas, principalmente do período da Guerra Fria, como a corrida espacial, o luta entre EUA e URSS pelo controle de nações estratégicas, e até participações especiais do presidente norte-americano Ronald Reagan e do estadista russo Mikhail Gorbachev. Mas onde ele realmente acerta é na construção dos personagens.
Batman é retratado como um homem torturado pela morte dos pais quando criança (é claro que não poderia faltar o clássico flashback do assassinato de Thomas e Marta Wayne), dividido entre o fardo da responsabilidade de cumprir a promessa que fizera diante do túmulo dos pais de combater o crime a todo custo, e o desejo de poder levar uma vida normal, como um chefe de família. Mike W. Barr coloca Bruce Wayne diante de uma possibilidade real de concretizar este desejo, quando o herói descobre que Talia al Ghul está esperando um filho seu. A perspectiva de se tornar pai faz Bruce Wayne cogitar até mesmo aposentar a Capa e o Capuz! Embora seja muito interessante ver o herói lidar com este dilema, as circunstâncias que levaram a esta situação incomodam a maioria dos fãs do Cruzado Encapuzado devido ao fato do autor distorcer alguns aspectos primordiais da personalidade de Bruce: de fato, é estranho ver o Batman, bem no meio de uma missão, distraindo-se com algo tão "trivial" como um relacionamento amoroso, ainda mais com a desculpa de que, por toda sua carreira de vigilante, nunca tivesse se dedicado à busca do verdadeiro amor. Isso vai completamente contra a ideia do Batman frio e insensível que estamos acostumados a ver.
Mas se por um lado Barr toma decisões equivocadas (não ouso dizer que ele errou ao mostrar um Batman mais humano, já que esta é a sua visão do personagem), por outro ele acerta ao explorar uma faceta do Batman que, a despeito de sua importância, é negligenciada por quase todos os roteiristas que assumem seus títulos: a do Detetive. Batman faz uso das duas principais características que um verdadeiro investigador deve ter, como o célebre escritor Arthur Conan Doyle explica em seu livro As Aventuras de Sherlock Holmes: a observação e a dedução. É interessante a forma como Barr expõe para o leitor todo o processo de análise de pistas que Batman faz em sua mente até chegar à conclusão que o levará a dar o próximo passo.
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Batman Investiga uma Cena de Crime |
Por fim, mas não menos importante, é preciso falar da arte que permeia as páginas desta história em particular. Sem dúvida esta Graphic Novel não seria a mesma sem as belíssimas ilustrações de Jerry Bingham. O desenhista nos brinda com quadros muito bem desenhados, e organizados de forma bem original, com desenhos sobrepondo-se uns aos outros ou mesclando-se entre si. As cores também são escolhidas de maneira inteligente e acompanhando o tom do enredo: cores frias para os momentos mais introspectivos, e quentes para os mais emocionantes. Tudo é muito agradável de se olhar, e até mesmo a falta de cor é usada como um artifício para tornar a arte mais equilibrada.
Com certeza esta é uma HQ que merece estar na estante de qualquer um que se considere colecionador de quadrinhos, ou que aprecie histórias do Maior Detetive do Mundo. Não é a toa que ela foi escolhida como uma das 25 melhores Graphic Novels do Batman, de acordo com o site de entretenimento IGN.
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Batman e Talia |
II. A Noiva do Demônio, por Mike W. Barr (roteiro) e Tom Grindberg (arte)
"A tentação para se entregar e desistir é grande... assim como foi na noite em que assassinaram seus pais... ou em todas as vezes em que se deparou com o tamanho da missão que escolheu para si. Assim como é sempre que tem a vida de um malfeitor nas mãos e percebe a tentação da vingança tentando tomar o lugar da justiça. Ele nunca retrocedeu... jamais se rendeu. E não fará isso agora.
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Batman Enfrenta os Capangas de Ra's |
Das três histórias que compõem a Trilogia do Demônio, esta é a que eu considero a mais fraca, por dois motivos: primeiro, o roteiro de Mike W. Barr é mais raso, dando preferência às cenas de ação e aventura em relação aos dilemas morais dos personagens, e em segundo lugar devido à arte, que, apesar de apelar para o estilo setentista de fazer quadrinhos, não chega aos pés da arte suave e agradável da história anterior. Contudo, isto não quer dizer que seja uma história ruim; pelo contrário, como a maioria dos roteiros de Barr, o enredo é muto bem escrito, e rende um bom divertimento justamente por causa da ação. Só não a considero como um clássico obrigatório para um leitor de quadrinhos que não seja fissurado nas HQs do Batman.
O enredo nos leva a acompanhar um dos planos de Ra's al Ghul de libertar o planeta de sua maior ameaça: o ser humano! Ele deseja fazer isto acelerando o processo de aquecimento global para que a população terrestre diminua a padrões mais aceitáveis, e ele possa se tornar o governante daqueles que restarem. No entanto, o famoso Poço de Lázaro não está mais funcionando como antes, e, sem saber o quanto ele poderá prolongar mais sua existência sobre a Terra, Ra's decide encontrar uma mulher capaz de lhe fornecer uma prole adequada. A escolhida é uma atriz hollywoodiana aposentada, que facilmente cai em sua lábia com a promessa de ter a antiga beleza restaurada. É claro que Batman acaba descobrindo os planos de Ra's al Ghul e mais uma vez se coloca entre o vilão e seu objetivo.
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Ra's Explica seu Plano |
Cronologicamente, esta história se passa após a morte do Robin Jason Todd, e após Bruce Wayne acolher o talentoso Tim Drake como seu novo protegido. Ainda traumatizado pelo que acontecera com o parceiro anterior, Batman não permite que o rapaz o acompanhe em suas missões antes de completar o treinamento, agindo todo o tempo como um pai super protetor. Contudo, Mike W. Barr não se aprofunda muito nesta questão, o que poderia render um peso mais dramático à trama ao invés da trama secundária do Dr. Carmody e seu filho Brent. Pelo menos o lado detetivesco do Cavaleiro das Trevas continua sendo bem explorado pelo autor, incluindo uma passagem em que ele precisa se disfarçar para se infiltrar na base de Ra's al Ghul. Para quem não sabe, uma das habilidades de Bruce Wayne é justamente o disfarce e a arte de atuar, os quais ele aprendeu de seu mordomo Alfred, que, além de espião britânico também já fez sucesso na ribalta. O disfarce mais famoso de Bruce é o do criminoso Matches ("Fósforos") Malone, e curiosamente a primeira vez que ele assumiu essa identidade foi em Batman 242, de Dennis O'Neil, num de seus primeiros embates contra Ra's al Ghul.
O maior trunfo desta história é a forma como Ra's al Ghul é apresentado. Apensar de ser considerado por muitos um vilão, na verdade ele é um personagem muito mais complexo. A meu ver, ele é um visionário, um homem que já viveu muito tempo e viu o que a raça humana fez e está fazendo ao meio ambiente e deseja pôr um fim em tanta destruição. O problema é que não há meio fácil de se fazer isso; tudo o que foi tentado até então ou falhou ou então demoraria muito tempo devido à política. Seu único pecado, a meu ver, é a megalomania: Ra's acredita que apenas ele tem a solução para o problema, e que, uma vez que o mundo volte a ser um paraíso, apenas ele ou alguém de seu sangue possa governar a raça humana e direcioná-la para um novo futuro, diferente do que estamos construindo para nós hoje. Realmente é difícil às vezes não torcer para que o vilão se dê bem nesta história.
Isso é tudo, p-p-pessoal! Espero que tenham gostado desta resenha. Falarei do próximo volume em outra postagem, não necessariamente na próxima! Boa leitura!
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