segunda-feira, 30 de maio de 2016

[RESENHA] Preacher #1: A Caminho do Texas


Preacher é uma polêmica história em quadrinhos lançada na década de 1990 pelo selo Vertigo da DC Comics, que é uma linha editorial mais voltada para o público adulto. O irlandês Garth Ennis ficou responsável pela estória, enquanto Steve Dillon ficou a cargo da arte. Glenn Fabry desenhou as incríveis capas desta obra. Atualmente existe uma série de TV homônima sendo exibida pelo canal AMC (o mesmo de The Walking Dead), a qual é baseada nesta obra.

Esta HQ possui todos os requisitos de um bom quadrinho adulto. Sexo, drogas and Rock'n Roll: confere! Palavrões, homor negro e muita bizarrice: confere! Violência explícita, com direito a tripas jorrando do ventre das pessoas, maxilares sendo arrancados por balas, cabeças explodindo, rostos sendo esfolados: Ah meu Deus, quem crê diz Amêm!: confere! Mas esta HQ criou muita polêmica na época por tratar de temas como homofobia, racismo e principalmente religião, e quem conhece os trabalhos de Garth Ennnis sabe que esse irlandês safado e boca suja não tem medo ou pudor de lidar com o politicamente incorreto.

Tudo começa em uma cidadezinha do Texas chamada Annville, onde o nosso protagonista, o pastor Jesse Custer, conduz os sagrados trabalhos à frente da pequena igreja local. Em um culto dominical, em meio à pregação de Custer, quando a igreja estava lotada (ela normalmente não é assim, mas neste dia em particular a congregação compareceu em peso devido aos eventos que ocorreram na noite de sábado, protagonizados por este mesmo pastor), uma entidade espiritual chamada Gênesis se apossa do corpo de Jesse Custer, e, devido à energia liberada no processo, a igreja é incinerada e os fiéis reduzidos a ossos carbonizados, Ao mesmo tempo, chegam à cidade Tulipa O'Hare, ex-namorada de Jesse, e o vampiro irlandês Cassidy, que, devido à eventos que poderiam ser chamados de coincidência, acabam se envolvendo com os acontecimentos na pequena igreja texana.

Tulipa e Cassidy
Não demora muito até que os três estejam na mira da polícia local, que foi chamada devido à explosão da igreja. O que eles não esperavam é que a entidade que possuiu Jesse lhe deu o poder chamado de "A Palavra de Deus", que lhe dá a capacidade de obrigar qualqer pessoa a fazer exatamente tudo o que ele ordenar. Mas não é apenas da polícia que eles precisam fugir. No Paraíso, os anjos chamados Adefins precisam corrigir a todo custo o erro de terem deixado Gênesis escapar para a Terra, mesmo que para isso precisem ressuscitar o Santo dos Assassinos e enviá-lo no encalço de Jesse e seus amigos. O resultado, como já era de se esperar, é uma mistura louca de fogo, morte e muito, muito sangue.

A primeira parte deste volume termina com o trio de amigos descobrindo que Gênesis é na verdade um ser que não pertence nem ao Céu nem ao Inferno, pois é filho de um anjo com uma "demônia". E não somente isso, mas o Criador, o Deus Todo-Poderoso, abandonou o Paraíso, deixando-o sob a supervisão dos anjos, e seu paradeiro até então é desconhecido, Jesse então decide partir em uma missão de encontrar Deus para tentar convencê-Lo a retornar às Suas divinas responsabilidades, enquanto tenta desesperadamente levar sua ex para a cama.

A Palavra de Deus
A segunda parte se passa em Nova York, quando Cassidy leva Jesse e Tulipa para conhecer um velho amigo seu que pode dar informações sobre o paradeiro de Deus. Mas eles acabam cruzando o caminho de um assassino em série apelidado pela imprensa de Retalhador Picador. Nem preciso dizer o que acontece com quem cai nas garras desse serial killer, né? Também somos apresentados a uma dupla incomum de detetives que estão investigando este caso: John Tool, um policial negro e atrapalhado que não conseguiria resolver caso algum se não fosse por seu parceiro, Paulie Bridges, o orgulho do departmaneto, mas extremamente violento e homofóbico. Mas em Preacher nem tudo é o que parece, e todos os personagens dessa saga guardam segredos que vão fazer a cabeça do leitor explodir, metaforicamente falando, é claro.

O que mais gostei nesta série, além da excelente estória , repleta de ação, surpresas e reviravoltas, e da arte competente de Steve Dillon, foram os personagens. Sem eles seria apenas mais uma estória sobrenatural qualquer. O que dizer de Cassidy, responsável por eu dar altas gargalhadas enquanto lia esta revista? Você está ali, tenso querendo saber como os personagens vão escapar de uma situação aparentemente insolúvel, e o vampiro irlandês manda uma pérola de humor negro que faz você se mijar de tanto rir, Ou o Cara de Cu, com a sua cara de... bem, de cu! E principalmente o Santo dos Assassinos, este pistoleiro absolutamente fodástico, que não à toa é o padroeiro de todos os assassinos.

Se você é religioso fanático e não se sente a vontade com histórias que abordem com cinismo e humor o assunto religião, ou se é daqueles que ficam de frescurinha quando vês cenas de violência e palavrão, passa longe, pois você não é o público alvo de Preacher! Para quem se interessou por esta obra, a Panini Comics compilou todas as 75 edições em 9 encadernados de luxo, em capa dura e papel couchê, que podem ser encontradas nas principais lojas de produtos geek do país. Boa leitura!

Capa da Primeira Edição de Preacher

quinta-feira, 26 de maio de 2016

Gótico Americano - John Constantine Entra em Cena!

Inglês... parecido com o Sting... cínico, de moral duvidosa... apostador... fumante compulsivo. Estas são apenas algumas características do personagem sobre o qual decidi falar nesta minha segunda postagem aqui no Blog. Não se trata de um herói, pois ele não hesita em sacrificar amigos ou inimigos para conseguir o que quer; tampouco poderia ser considerado um vilão, pois, apesar de na maioria das vezes pensar apenas em si próprio, ainda há um pouco de bondade em seu coração, a ponto de desafiar tudo e todos para salvar as pessoas de que gosta. Mas chega de enrolação, pois com certeza você já sabe de quem estou falando: John Constantine, o Hellblazer!

Monstro do Pântano nº37

Nesta postagem irei falar sobre a primeira aparição do mago da DC/Vertigo nos quadrinhos. Nem todo mundo sabe, mas Constantine não começou sua carreira como protagonista, com um título próprio. Sua apresentação ao público se deu nas páginas da revista mensal do Monstro do Pântano, na edição 37, no auge da consagrada passagem do mago das HQ's Alan Moore pela revista do Musgoso. Moore assina a criação do mago e ocultista juntamente com Steve Bissete e John Totleben. Existe até uma lenda (alguns juram que é verdade) de que Alan Moore encontrou a sua criação cara a cara, em Londres. Saca só o relato:

“Um dia, eu estava em Westminster, em Londres – isso depois que eu tinha apresentado o personagem – e eu estava sentado em uma lanchonete. De repente, pelas escadas desceu John Constantine. Ele estava usando um sobretudo, não muito comprido – ele parecia – não, ele não parecia exatamente com o Sting. Ele parecia exatamente com John Constantine. Ele olhou para mim, me encarou diretamente nos olhos, sorriu, acenou quase conspiratoriamente, e então só andou por ali para o outro lado do balcão. Eu estava sentado ali e pensava, “devo ir até o canto e ver se ele está realmente ali, ou devo comer meu sanduíche e ir embora?” Optei pela segunda opção; pensei ser a mais segura. Eu não estou fazendo nenhuma declaração ou nada do tipo. Estou apenas dizendo que aconteceu. Historinha estranha”.


Primeira aparição de John Constantine

Feitas as devidas apresentações, vamos falar sobre a saga propriamente dita. Gótico Americano começa com John Constantine descobrindo que uma seita de feiticeiros sul-americanos chamada Brujeria pretende despertar uma entidade maligna primordial. Para uns, trata-se de uma força da natureza; para outros, seria a criatura mítica lovecraftiana Cthulhu; outros ainda consideram ser o próprio Satã. Independente de sua origem, uma coisa é certa: se esta criatura for invocada, o Paraíso e todas as dimensões espirituais serão destruídos e uma nova ordem será instaurada.Constantine descobre que, para obter a energia necessária para concluir a invocação, a Brujeria precisará aumentar a crença da população no místico e no sobrenatural. "Credulidade é poder..." - diz Constantine. Com certeza já dá para imaginar que eles não vão usar unicórnios, fadas e duendes para este propósito. A Brujeria faz surgir por todo o mundo aparições de criaturas clássicas do horror americano: vampiros, lobisomens, zumbis, fantasmas, e afins. Constantine então convence o Monstro do Pântano a viajar para várias partes dos Estados Unidos a fim de lidar com essas monstruosidades e assim se preparar para o que está por vir. É claro que o Monstro do Pântano não confia de imediato em Constanine, mas este o convence com promessas de conhecimento sobre sua verdadeira condição de Elemental da Terra.

Nas histórias que se seguem percebemos o talento de Alan Moore ao mesclar contos de terror clássicos com os problemas sociais que os EUA enfrentavam ao final da década de 80, e fico impressionado em como muitos deles ainda persistem até hoje. Em "A Maldição" (M. do P. #40) uma mulher no Maine, cansada das humilhações e exigências impostas às mulheres pela sociedade machista moderna, transforma-se em uma "lobimulher" e espalha o terror por sua cidade, onde originalmente havia uma aldeia indígena onde as mulheres eram trancafiadas em uma cabana escura durante o período menstrual. Moore e Bissete brincam com o gênero deterror ao nos mostrar a grotesca transformação de Phoebe, o lobo saindo de dentro da sua boca, abrindo caminho à força pela garganta da mulher, como se descartasse uma pele usada.

A "Lobimulher" Feminista

Já em "Mudanças Sulistas" (M. do P. #41) e "Frutos Estranos" (M. do P. #42), racismo e intolerância religiosa são abordados enquanto o Monstro do Pântano precisa interromper um círculo vicioso de ódio e violência, quando um grupo de escravos negros da Loisiana, chacinados por seus senhores brancos simplesmente por praticar seus rituais pagãos, retornam ao mundo dos vivos como zumbis para se vingar daqueles que os escravizaram no passado. "Dança dos Fantasmas" (M. do P. #45) é uma clara crítica às leis americanas que incentivam o porte de armas de fogo. Nesta bela estória, um grupo de amigos se perde dentro de uma mansão mal-assombrada em San Miguel, construída pela filha de um famoso fabricantes de armas, segundo a instrução de fantasmas, a fim de tentar reparar o mal causado pelas armas do pai. Estas são minhas estórias favoritas dessa primeira parte da saga. Existem ainda outras, mais bizarras e menos interessantes, que eu não vou mencionar aqui.

Embora obtenha sucesso em trazer para seu lado um aliado poderoso como o Monstro do Pântano, Constantine sofre várias baixas no seu próprio time, quando a Brujeria envia contra eles o assustador Invunche, que Moore retira diretamente do folclore chileno. Contantine não consegue impedir a invocação da entidade pela Brujeria em "Na Patagônia"  (M. do P. #48) , devido a uma traição no cerne de sua própria equipe. Mais amigos morrem - o próprio Constantine quase não sai vivo desta batalha. Confesso que fiquei boquiaberto com o ritual usado pelos feiticeiros para realizar a invocação. Não vou falar aqui o que eles fazem - é algo que você precisa ler sozinho, de madrugada e com as luzes apagadas. Só digo que é algo envolvendo uma cabeça, um corvo e uma pérola. Pelo menos dessa vez a maior parte da cena não é mostrada diretamente em imagens; o leitor apenas imagina o que está acontecendo pela descrição feita pelo sumo-sacerdote da Brujeria.

O temível Invunche
Agora a saga caminha a passos rápidos para sua épica conclusão. Enquanto o Monstro do Pântano viaja para as dimensões espirituais a fim de reunir seus aliados para a batalha vindoura - e aqui novamente Alan Moore pega emprestadas figuras clássicas do panteão mágico da DC Comics, como o Desafiador, Vingador Fantasma, Senhor Destino, Etrigan e Espectro -, Constantine têm de empregar novamente toda sua lábia e astúcia para convencer os mais poderosos magos da Terra a ajudarem-no a enfrentar o Mal que a Brujeria despertou. A maioria deles são medalhões da Era de Ouro e Prata dos Quadrinhos, como Barão Winter, Sargon, Zatara, Dr. Oculto. Além disso, ficamos sabendo que Constantine e a feiticeira Zatanna já foram namorados em sua juventude, e que costumavam frequentar reuniões em um certo grupo de estudos tântricos...

Constantine e os Feiticeiros


A chegada da entidade maligna divide as fileiras do próprio Inferno. Uma facção dos demônios se junta a Etrigan, enquanto que a outra saúda a chegada do novo poder em ascensão, e se volta contra seus próprios compatriotas; mas, falando de demônios, até que isso não é novidade nenhuma! Enquanto isso, na Terra, Constantine e seus companheiros se reunem em uma mesa redonda na casa mágica do Barão Winter para enviar suas energias espirituais até o exército que luta nas dimensões infernais. Mas a criatura libertada pela Brujeria é muito poderosa; Nem Etrigan e seus demônios ou o Vingador Fantasma e as hostes celestiais conseguem derrotá-la. O próprio Espectro, que é a personificação da vindança divina, tomba diante da entidade. Devo registrar aqui a minha decepção quanto à caracterização dos anjos feita por Bissete; se você está esperando encontrar criaturas imponentes, belas e com grandes asas resplandescentes, esqueça!

Embora Constantine tivesse alegado que não haveria risco para os membros de sua rodinha espiritual, alguns membros de sua equipe são literalmente fritados pela energia astral da criatura. Uma das mortes, não vou revelar de quem, me deixou muito chocado, devido às circunstâncias em que ocorreu.

E agora, finalmente, a conclusão. Se você ainda não leu e pretende ler, CUIDADO! SPOOOOOOILERS À FRENTE!

A criatura invocada pela Brujeria é na verdade a personificação do próprio mal, em seu significado mais puro. A cada desafiante que vem enfrentá-la é feita uma pergunta: "O que é o mal?" e todos oferecem respostas insatisfatórias. Apenas o Monstro do Pântano consegue dar a resposta que o Mal queria ouvir, naquele seu jeito devagar, devagarinho de falar:

"Eu perguntei ao Parlamento das Árvores... com todo o seu conhecimento... bem maior do que o meu... Eles pareciam insistir... em que não existe o mal... mas eu vi o mal... e aquela resposta... foi incompreensível para mim... Entretanto... Eles falaram de pulgões comendo folhas... joaninhas comendo pulgões... e depois sendo absorvidos pelo solo... nutrindo a folhagem. Eles indagaram... onde estava o mal... dentro desse ciclo... e me disseram... para olhar o solo. O solo negro... e rico em putrefata decomposição... mas a gloriosa vida... brota dele... e... mesmo deslumbrante... a vida que floresce... no final... se decompõe... no mesmo humus negro. Talvez o mal... seja o húmus... formado pela deterioração da virtude... e talvez... seja desse barro sinistro... que a virtude cresça mais forte."

O encontro do Mal com o Bem
E então a forma do Mal é revelada, e a do Bem... e quando elas se encontram, acontece uma coisa completamente inesperada, que só poderia ter vindo de uma mente como a de Alan Moore. É preciso entender primeiro o contexto histórico e cultural em que esta estória foi escrita. Os leitores dessa revista cresceram em plena Guerra Fria, quando o mundo encontrava-se polarizado pela disputa EUA vs URSS. E isso se refletia na maioria das artes, no cinema, na TV e histórias em quadrinhos também não ficaram de fora, de modo que a cultura americana era marcada por um forte maniqueísmo. Todas as aventuras resumiam-se em uma eterna luta do bem contra o mal, do céu contra o inferno, da luz contra as trevas, do herói contra o vilão. E o pior é que isso era incentivado pelo governo norte-americano! Alan Moore critica essa ideia, revelando com simples imagens e palavras em uma única splash page que o bem e o mal são uma coisa só, dois lados de uma mesma moeda, e que um precisa do outro. Já não existem mais heróis ou vilões; os heróis agora são capazes de errar, de cometer atrocidades, o super-homem não é mais aquela representação da perfeição humana; os vilões também são capazes de amar, de fazer o bem, de ter atitudes positivas. Bem e mal andam de mãos dadas nesse mundo, e não existe ninguém que seja só uma coisa ou outra.

DICA DE LEITURA: Se você gostou desse resumo e se interessou pela estória, recomendo a leitura da Saga do Monstro do Pântano, que condensa em 6 volumes toda a aclamada fase de Alan Moore na revista do Verdinho, publicada aqui nas terras tupiniquins pela Panini. Infelizmente, até esta presente data, todas as edições encontram-se esgotadas, a não ser nas mãos dos abutres do Mercado Livre, e não parece que a Panini pretenda relançar isso tão cedo. Mas se você procurar direitinho pela Internet, vai encontrar este material digitalizado e em excelente qualidade. Com certeza uma saga que vale a pena ler, não só pela qualidade visual, mas pelo conteúdo riquíssimo. Boa leitura!